Por George Matsas*<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n A segunda lei da termodin\u00e2mica, uma das mais bem testadas da f\u00edsica, afirma que a desordem de todo sistema fechado tende a aumentar. \u00c9 por isso que voc\u00ea acordar\u00e1 com os cabelos despenteados por mais que os penteie \u00e0 noite, e n\u00e3o o contr\u00e1rio.<\/p>\n\n\n\n Desafortunadamente, a segunda lei n\u00e3o \u00e9 um problema apenas para os cabeludos. Ela tamb\u00e9m nos diz que, para arrumar qualquer bagun\u00e7a, teremos que gastar alguma quantidade de energia. Por\u00e9m, fomos condicionados pela evolu\u00e7\u00e3o a economizar energia, n\u00e3o a gast\u00e1-la. O resultado \u00e9 um mundo cada vez mais ca\u00f3tico.<\/p>\n\n\n\n A segunda lei \u00e9 uma regra universal e n\u00e3o poupa nada nem ningu\u00e9m. Nem mesmo a Academia, que deveria ser a \u00faltima trincheira da racionalidade. Hoje, ela abriga alguns negacionistas do aquecimento global, da efici\u00eancia das vacinas, da evolu\u00e7\u00e3o das esp\u00e9cies e sabe-se l\u00e1 mais do qu\u00ea.<\/p>\n\n\n\n Acontece que as universidades p\u00fablicas s\u00e3o sustentadas pela sociedade, incluindo os seus segmentos mais pobres, para serem santu\u00e1rios da racionalidade. E a liberdade acad\u00eamica n\u00e3o \u00e9 um passaporte para negar a pr\u00f3pria miss\u00e3o da Universidade. A coniv\u00eancia da comunidade acad\u00eamica diante da presen\u00e7a de negacionistas em suas fileiras desmoraliza as universidades e trai o contribuinte que a sustenta. A pergunta \u00f3bvia, ent\u00e3o, \u00e9: o que fazer diante desse quadro?<\/p>\n\n\n\n A maneira mais simples de se lidar com o problema \u00e9 usando o \u201cprotocolo n\u00e3o-tenho-nada-a-ver-com-isso\u201d, que inclui: (i) se isentar de toda a responsabilidade; (ii) arranjar algum bode expiat\u00f3rio (por exemplo, a segunda lei da termodin\u00e2mica); (iii) adicionar uma pitada de autopiedade; e (iv) se convencer de que h\u00e1 outros problemas mais urgentes a serem resolvidos \u2014 sempre h\u00e1. Mas adotar essa op\u00e7\u00e3o n\u00e3o seria algo decente da minha parte.<\/p>\n\n\n\n Sendo assim, vamos aos fatos. A var\u00edola foi erradicada, a AIDS foi controlada e nunca tantas vacinas foram produzidas em t\u00e3o pouco tempo como ocorreu agora, com o fim de combater a covid-19. A ci\u00eancia tem ajudado a salvar incont\u00e1veis vidas, e ainda outras mais poderiam ser salvas, se as pessoas ouvissem um pouco mais a ci\u00eancia e usassem a m\u00e1scara para cobrir nariz e boca, e n\u00e3o queixo e pesco\u00e7o.<\/p>\n\n\n\n Seja como for, o saldo l\u00edquido \u00e9 que, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida do brasileiro aumentou 30 anos em seis d\u00e9cadas! Esse deveria ser argumento mais do que suficiente para convencer qualquer um do sucesso da ci\u00eancia. Como \u00e9 poss\u00edvel, ent\u00e3o, que mesmo agora a ci\u00eancia ainda dispute lugar com o \u201cachismo\u201d e que o negacionismo grasse por todos os cantos, e at\u00e9 em algumas vielas escuras da Academia?<\/p>\n\n\n\n A ci\u00eancia n\u00e3o tem respostas finais<\/strong><\/p>\n\n\n\n Antes de responder a esse questionamento, que fique claro que n\u00e3o estou advogando que a ci\u00eancia possua respostas finais. A ci\u00eancia n\u00e3o tem respostas finais, mas ela se diferencia do achismo por, pelo menos, quantificar suas incertezas. N\u00e3o \u00e9 uma op\u00e7\u00e3o negar a efici\u00eancia das vacinas em rela\u00e7\u00e3o ao placebo s\u00f3 porque n\u00e3o se consegue ver com os olhos todo o processo de defesa que elas proporcionam ao organismo, assim como n\u00e3o se pode negar a esfericidade da Terra s\u00f3 porque n\u00e3o se pode abra\u00e7\u00e1-la com as m\u00e3os. Ainda n\u00e3o encontrei ningu\u00e9m que negasse a exist\u00eancia dos smartphones. Provavelmente, porque \u00e9 mais dif\u00edcil negar algo que se pode tocar, mas com certeza ainda aparecer\u00e1 algu\u00e9m para argumentar que eles n\u00e3o passam de ilus\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n O negacionismo vai al\u00e9m da idiotice. A palavra \u201cidiota\u201d vem do grego \u201c\u03af\u03b4\u03b9\u03bf\u03c2\u201d, que significa \u201cmesmo\u201d ou \u201cigual\u201d. O negacionismo est\u00e1 longe de ser \u201clugar comum\u201d; trata-se de pura m\u00e1-f\u00e9, completa falta de intelig\u00eancia ou, mais provavelmente, uma combina\u00e7\u00e3o das duas!<\/p>\n\n\n\n A Academia n\u00e3o tem o direito de fechar os olhos \u00e0 presen\u00e7a dos negacionistas em seus quadros. \u00c9 urgente que os comit\u00eas de \u00e9tica sejam acionados para que tais casos sejam analisados, e san\u00e7\u00f5es, aplicadas. Se eu acho que isso vai acontecer? Minha resposta, tristemente, \u00e9 n\u00e3o!<\/p>\n\n\n\n Recentemente conversei com colegas da Academia de Ci\u00eancias do Estado de S\u00e3o Paulo e da Academia Brasileira de Ci\u00eancias \u2014 lugares que, surpreendentemente, sequer possuem comit\u00eas de \u00e9tica \u2014 para expor o problema, e algumas rea\u00e7\u00f5es de reputados cientistas explicam meu pessimismo.<\/p>\n\n\n\n Houve quem tenha me dito, por exemplo, que poder\u00edamos ser acusados de “ca\u00e7a \u00e0s bruxas”. Ora, o cap\u00edtulo funesto da Inquisi\u00e7\u00e3o foi causado, justamente, por preconceitos e crendices, n\u00e3o pelo pensamento racional. Outra resposta, na mesma linha, foi a de que poder\u00edamos ser acusados de estar voltando \u00e0 \u00e9poca da \u201ccensura do AI-5\u201d. O AI-5 foi um ato baixado por um regime ditatorial. Nada tem a ver com comit\u00eas de \u00e9tica eleitos, democraticamente por pares, e que dariam pleno direito de defesa ao denunciado. Finalmente, outros quiseram me consolar, dizendo que a Academia de Ci\u00eancias da Fran\u00e7a tem problemas semelhantes, como se pud\u00e9ssemos ser absolvidos de nossos pecados pela exist\u00eancia de outros pecadores.<\/p>\n\n\n\n Tudo isso me leva \u00e0 minha \u00faltima pergunta: O que pode explicar a ina\u00e7\u00e3o da Academia diante da verdadeira infec\u00e7\u00e3o que sofre por parte de corpos estranhos a ela?<\/p>\n\n\n\n A resposta mais direta poss\u00edvel \u00e9 que o sal\u00e1rio dos negacionistas n\u00e3o \u00e9 pago pelos demais acad\u00eamicos. Ah, sim, porque a primeira coisa que um cirurgi\u00e3o faria, se descobrisse que o homem que pensou ter contratado como instrumentista \u00e9, na verdade, um lutador de MMA, seria demiti-lo por justa causa.<\/p>\n\n\n\n A luta entre raz\u00e3o e instinto<\/strong><\/p>\n\n\n\n J\u00e1 uma resposta mais diplom\u00e1tica, e talvez mais sofisticada, passaria por perceber que o ser humano e o chimpanz\u00e9 comungam de 96% dos seus genes. Aquilo que chamamos de raz\u00e3o est\u00e1 nos outros 4%. J\u00e1 o instinto de corporativismo deve pertencer aos 96% de genes comuns, pois suponho que tenha suas origens nas savanas africanas, quando nossos antepassados dependiam fortemente do grupo para sobreviver.<\/p>\n\n\n\n Al\u00e9m de 96% ser um valor superior a 4%, as for\u00e7as instintivas sempre tendem a falar mais alto \u2014 do contr\u00e1rio, algu\u00e9m me explique como o fanatismo das torcidas esportivas poderia ser fruto da raz\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n A consequ\u00eancia \u00e9 que a academia \u00e9 r\u00e1pida para criticar cortes de verbas usando um discurso muito coerente, de que tal conduta terminar\u00e1 por prejudicar a sociedade em m\u00e9dio e longo prazo. Mas \u00e9 lenta quando se trata de cortar na pr\u00f3pria carne, por mais que isso se mostre igualmente necess\u00e1rio a fim de defender o interesse da popula\u00e7\u00e3o, que alega ser sua prioridade.<\/p>\n\n\n\n Em resumo: os instintos gritam, a raz\u00e3o sussurra e o embate come\u00e7a na escurid\u00e3o de nosso \u00edntimo. Os argumentos s\u00e3o pin\u00e7ados a posteriori para defender o vencedor, que quase sempre j\u00e1 foi aclamado muito antes, pelos genes que integram o grupo dos 96%.<\/p>\n\n\n\n Claro que o leitor pode contra-argumentar dizendo que este mesmo artigo seria um contraexemplo \u00e0 minha tese, pois, longe de me tornar mais popular no grupo, estaria ferindo meu pr\u00f3prio instinto de sobreviv\u00eancia.<\/p>\n\n\n\n Para resolver esse paradoxo, voltemos ao ponto de onde come\u00e7amos. A desagrega\u00e7\u00e3o das institui\u00e7\u00f5es, a relativiza\u00e7\u00e3o da \u00e9tica e a omiss\u00e3o das responsabilidades n\u00e3o favorecem em nada o sucesso da esp\u00e9cie. Quando algu\u00e9m realmente se d\u00e1 conta deste fato, os instintos voltam a se agitar, e, ent\u00e3o, alguns s\u00e3o levados a gritar o \u00f3bvio: \u201cO REI EST\u00c1 NU\u201d.<\/p>\n\n\n\n A permissividade da Academia diante da exist\u00eancia de negacionistas confessos em suas fileiras \u00e9 inaceit\u00e1vel do ponto de vista \u00e9tico, irracional do ponto de vista l\u00f3gico e um estelionato do povo que a sustenta \u2013 mas isso todos n\u00f3s j\u00e1 sabemos, certo?<\/p>\n\n\n\n George Matsas \u00e9 professor do Instituto de F\u00edsica Te\u00f3rica (IFT) da Unesp e membro titular da Academia de Ci\u00eancias do Estado de S\u00e3o Paulo (ACIESP)<\/em><\/strong><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"