UFSC em gerações
Mais da metade dos docentes ingressou na universidade na última década: mais velhos e com menos direitos
A caminho da UFSC com seus fones de ouvido que tocam funk ou deitado à beira do lago do campus depois do almoço, Paolo Colosso pode facilmente ser confundido com um dos 30 mil estudantes da universidade. Aos 36 anos, ele é um dos mais jovens professores do Centro Tecnológico (CTC), onde desde 2019 dá aulas de Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo. Paolo integra uma nova geração de docentes que entrou na universidade na última década e já é maioria. Entre os 2,37 mil professores que estavam na ativa em janeiro de 2019, 62% ingressaram na federal nos últimos dez anos segundo dados da Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoas (Prodegesp).
Os números condizem com a evolução das contratações na universidade: depois de uma redução nos concursos no fim dos anos 1990, o quadro de magistério superior da UFSC passou por uma expansão, principalmente entre 2009 e 2014. A implementação dos campi de Curitibanos, Araranguá, Joinville e Blumenau deu impulso a essa renovação. A pesquisa feita pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) a pedido da Apufsc ajuda a entender as muitas gerações que convivem hoje na universidade e, especialmente, a da última década. São professores em fase inicial de carreira, ainda que muitos possam ter tido experiências anteriores em outras áreas ou em outras instituições. São jovens, mas não tão jovens quanto os que entraram há três, quatro décadas, quando a carreira de professor universitário era outra.
A UFSC, como as demais universidades federais, não exigia doutorado nem mestrado na seleção dos docentes, até porque a própria pós-graduação ainda era incipiente no país e restrita às universidades mais antigas. Era comum que profissionais do mercado que se destacavam em suas áreas de atuação fossem convidados para dar aula nas universidades, apenas com a graduação. Os concursos selecionavam pela competência comprovada na área do conhecimento em que havia necessidade de professores. Isso explica por que uma parcela significativa dos atuais aposentados da UFSC (quase 17%) ingressou na universidade antes dos 25 anos. Hoje, entre os ativos, esse percentual não chega aos 5%.
O perfil dos docentes começa a mudar de forma significativa a partir dos anos 2000, quando os concursos para professores universitários passam a exigir doutorado. As gerações das últimas duas décadas tiveram de investir muitos anos na própria formação para concorrer a vagas cada vez mais disputadas. Hoje, como o doutorado deixou de ser um diferencial, há candidatos que dão aula voluntariamente ou que partem direto para o pós-doutorado para terem maiores chances nos concursos.
Desde que optou pela carreira acadêmica, ainda na graduação, Paolo Colosso levou praticamente 15 anos se preparando para se tornar professor universitário: formou-se em Arquitetura e Urbanismo, depois em Filosofia, e aliou as duas áreas no mestrado e no doutorado com o intuito de estudar e entender as cidades. Em 2019, depois de obter o título de doutor, começou sua maratona para disputar uma vaga de professor em uma universidade federal. Cinco meses, três concursos e uma gastrite depois, ele foi aprovado na UFSC. Hoje, Paolo vê na universidade pública “um lugar onde se pautam os horizontes de sociedade” e, na sala de aula, um espaço de transformação. “Daqui a dez anos, quero ter formado pessoas que tenham desejo de uma cidade menos desigual. Mais do que trabalhar como arquiteto só para satisfazer pequenos caprichos e demandas do mercado, quero saber que marquei de alguma forma a vida dessas pessoas”, comenta o professor que, nos poucos meses exercendo a profissão, diz não saber mais discernir o que é trabalho do que é seu tempo livre. “Você faz algo e se reconhece naquilo. Então ou eu estou sempre trabalhando, ou nunca estou trabalhando”, brinca.
Paolo Colosso escolheu morar a menos de cinco minutos a pé do trabalho, tanto para evitar o trânsito da ilha, como para “viver a universidade”. Costuma ir uma vez por mês para Itapira (SP) visitar a família. Concilia a rotina acadêmica com a publicação de análises de conjuntura em sites como Carta Capital, Outras Palavras, GGN e Justificando, e com a coordenação do projeto Br Cidades, que reúne ONGs e entidades profissionais na discussão de uma nova agenda urbana. Paolo não se esquiva de assuntos políticos. Pelo contrário, gosta do debate. “Nós, a universidade pública, temos que voltar a mostrar nosso papel como sendo o lugar onde se pautam os horizontes de sociedade e de cidade”, diz. “O mercado não fornece saída para a crise urbana e, se o poder público também não está fornecendo, a universidade pública tem que ter essa força social.”
Muito além das 40h
Vencida a etapa da seleção, esses pesquisadores ingressam em uma carreira com menos direitos e em que a sobrecarga de trabalho os desafia cotidianamente a dar conta do recado sem adoecer. “É um Deus nos acuda. Não pergunte como eu consigo fazer tanta coisa porque eu não sei”, diz Leila Hayashi, 44 anos, docente do Departamento de Aquicultura (CCA). A rotina da professora, que completa este ano uma década de UFSC, envolve a orientação de um doutorando, três mestrandos e uma iniciação científica, além das aulas em duas disciplinas da graduação e três na pós, da coordenação da pós-graduação e de um projeto de internacionalização Print. Na coordenação do Laboratório de Algas, para onde vai três vezes por semana, Leila faz reunião com os bolsistas, orienta pesquisas com alunos, organiza as saídas de campo para as fazendas de cultivo e as coletas de material para as aulas práticas.
Com todas essas demandas e também porque acaba levando trabalho para casa, Leila percebe que seu tempo dedicado ao lazer é muito curto – condição compartilhada pela maioria dos docentes e que ficou evidente na pesquisa do Lastro. As atividades realizadas com mais frequência por professores e professoras da UFSC fora da universidade não são atividades de lazer, mas de trabalho: afazeres domésticos (36,25%); estudos relacionados à atividade profissional (32,16%); trabalho acumulado da universidade (36,10%) e outras atividades relacionadas à profissão, como elaboração de projetos, pareceres ou relatórios (36,14%). Leila tenta tirar pelo menos um dia do fim de semana para se desligar de tudo. “Tenho amigos que me convidam para ir ao cinema, por exemplo, e eu já não vou porque sei que vou dormir no meio do filme, de tão cansada”. As aulas de dança de salão, que amava, já não encaixam na agenda. “Eu gostaria de fazer alguma atividade mais frequentemente, mas o estado de cansaço é tão grande que você fica meio apático”, lamenta.
Descendente de japoneses, Leila Hayashi recebeu apoio e estímulo para se tornar professora vindos do outro lado do mundo. Seu avô, Kyoto, que acaba de completar 99 anos, trabalhou como técnico em uma universidade pública no Japão e trata com reverência o ofício de ensinar. “Lá as pessoas te saúdam, te agradecem por você estar ensinando os outros e ter uma profissão tão nobre. No Brasil, ser professor e nada é quase a mesma coisa. Chega a ser triste.” Hoje, uma das maiores recompensas do seu trabalho é a relação que costuma desenvolver com os estudantes. “Não tenho filhos, mas tenho todos os meus alunos, que considero como filhos”. No último ano, com a greve estudantil contra os cortes na educação, esse vínculo se fortaleceu. “Foi enriquecedor estar ao lado deles ajudando na conscientização de que estamos em uma universidade pública e gratuita. De que esse tipo de educação não é um luxo, é uma necessidade.”
Quem está há mais tempo na UFSC percebe com muita clareza como o trabalho se precarizou ao longo das décadas. Cristina Scheibe Wolff, que entrou em 1992, aos 24 anos de idade, no departamento de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), diz que a exigência por produtividade aumentou, mas que a sobrecarga se deve também ao crescimento do número de alunos que não foi acompanhado pela contratação de novos professores. Ela conta que o curso de graduação em História, por exemplo, tinha 29 docentes no começo do governo de Fernando Henrique Cardoso, quando ingressavam 30 alunos por semestre. Com as aposentadorias, o número caiu para 18 e assim se manteve até o início dos anos 2000. Com a retomada das contratações, o curso voltou agora a ter 30 docentes novamente, mas o número de alunos entrantes passou para 45 por semestre, totalizando cerca de 400. Além disso, foram abertos novos cursos que são atendidos por professores de História: Museologia, Cinema, Relações Internacionais e Literatura Indígena.
“A sobrecarga existe faz tempo, só que antes trabalhávamos animados porque havia editais, mais bolsas de estágio, mais bolsas de pós-graduação e de pós-doutorado, oportunidades para os alunos fazerem sanduíche, professores visitantes. O ano de 2019 e as medidas do governo Bolsonaro nos trouxeram muita angústia, depressão”, desabafa Cristina, que participou da Comissão Memória e Verdade da UFSC e escreveu sobre as mulheres vítimas da ditadura.
Entre essas medidas, está a reforma da Previdência, promulgada em novembro de 2019. As mudanças atingem duramente os professores federais de todas as gerações. Ninguém foi poupado. Cristina Scheibe, por exemplo, poderia se aposentar daqui a dois anos, quando completa 30 anos de contribuição. Agora, se quiser manter a integralidade (aposentadoria com o mesmo valor do último mês de atividade) e a paridade (mesmos reajustes dos servidores da ativa), terá que esperar a nova idade mínima (de 62 anos) ou optar por uma regra de transição e trabalhar até os 57 – o que é mais vantajoso para ela.
Em quase 30 anos, a aposentadoria dos servidores públicos federais passou por cinco reformas (contando com a de Jair Bolsonaro). Os quase 1,5 mil professores e professoras que entraram na última década – e também vão se aposentar mais tarde – já não tinham muitos dos direitos de gerações anteriores, como a de Cristina. A integralidade e a paridade caíram em 2003. E, dez anos depois, uma alteração ainda mais profunda limitou o valor da aposentadoria ao teto do INSS, hoje de R$ 6,1 mil.
Vassoura nova é que varre bem
O choque para quem ingressa na carreira docente é imediato. É preciso, na largada, sobreviver ao estágio probatório (período de três anos em que o docente está sob avaliação). Daiane Bertasso, de 37 anos, professora do Departamento de Jornalismo (CCE), concluiu o seu há três anos, mas ainda se lembra do que passou nessa fase. “Eu costumava ouvir dos colegas: vassoura nova é que varre bem.” Sem conseguir dizer não para as tarefas que recebia, acabou acumulando a preparação das aulas, com reuniões nos colegiados dos cursos de Jornalismo e Biblioteconomia e coordenação de estágio. “Os novatos acabam sendo sobrecarregados pelos outros colegas, que também já passaram por isso. É uma cultura de passar adiante o sacrifício”, diz.
O fim do período de avaliação veio como um divisor de águas para ela. Daiane começou a sentir a chefia mais solícita aos seus pedidos, passou a ter mais liberdade para escolher horários de aula e administrar a carga de trabalho – que não é baixa. Só então se sentiu confortável para levar adiante um outro projeto: o da maternidade. Queria ter uma relação estabelecida no emprego e, principalmente, estar preparada para dividir a atenção entre a vida familiar e a profissional – tarefa que tem se mostrado um desafio diário desde a chegada de Heitor, em janeiro de 2018. Assim como tantas outras mães no ambiente de trabalho, experimenta a exaustão de ter que atender às necessidades de um bebê, o que inclui passar noites em claro, mantendo o mesmo ritmo profissional. “É bem desafiador”, diz. “Aos poucos a gente vai se acostumando a se sentir constantemente frustrada: ou em relação ao filho ou ao trabalho.”
Maurício Badaró, professor de Odontologia, está no começo de seu estágio probatório. Em menos de um ano de UFSC ele já pode perceber que a burocracia e as tarefas administrativas tomam tempo demais dos professores: são projetos e relatórios de pesquisas, documentos do estágio probatório, pareceres de validação de diplomas e suas cópias. Hoje, além das aulas, das práticas laboratoriais e dos projetos de extensão, ele também é responsável por avaliar a compatibilidade de diplomas de instituições estrangeiras e por coordenar a disciplina Clínica III. “Encaixar em 40 horas fica difícil. Sempre acabo levando trabalho para casa.”
No ano passado, ele conseguiu tempo para se dedicar a aprender um novo idioma. Depois das aulas e atividades laboratoriais que preenchem sua segunda-feira das 7h30 às 17h, Maurício estuda Francês no Centro de Comunicação e Expressão (CCE). Só às 20h deixa o campus e dirige para sua casa no Itacorubi, onde mora sozinho. Ele não é de reclamar, nem gosta de discutir política. Costuma dizer que, quando uma porta se fecha, é melhor encontrar outra que esteja se abrindo do que ficar se lamentando e dá como exemplo os cortes no orçamento da universidade: com menos recursos, o professor é forçado a explorar novas possibilidades, seja com uma mudança na linha de pesquisa, na busca por parcerias nacionais e internacionais ou na interação com outros pesquisadores para que, juntos, unam o que cada um tem disponível a fim de “fazer algo maior”. “Eu procuro não olhar a política tal, o candidato tal… Eu procuro ver o que tenho pra fazer”, diz.
Natural de São José do Rio Preto, no interior paulista, viveu a maior parte de sua vida na cidade de São Paulo. Trocou o Minhocão pela Ponte Hercílio Luz porque “só um maluco para desperdiçar a oportunidade de trabalhar na UFSC”. Tiago Borges dedica mais tempo à universidade do que seu contrato de 40 horas de dedicação exclusiva prevê – o que não considera necessariamente uma virtude. É nos finais de semana que ele coloca as leituras e outras tarefas acadêmicas em dia. Mesmo nas férias, segue com as pesquisas. “Eu não tenho tempo nem de respirar”, diz em sua sala no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), onde as prateleiras entortaram pelo peso de tantos livros. Em seus momentos de folga, dedica-se à literatura e aproveita para ir ao cinema – assiste dos clássicos ao popular Vingadores.
Uma preocupação comum: o desmonte da universidade pública
Mas a pesquisa encomendada ao Lastro pela Apufsc mostra que os professores estão, sim, preocupados com o futuro da universidade pública. O questionário indagou aos docentes quais aspectos mais os preocupam em relação à carreira e ao trabalho. Um total de 613 professores da ativa responderam à questão aberta e as expressões mais frequentes que emergiram dessas respostas foram: falta de recursos, futuro da universidade, condições de trabalho, plano de carreira, recursos para pesquisa, falta de perspectiva, reforma da previdência e falta de verbas.
Para o professor Jacques Mick, um dos responsáveis pelo estudo do Lastro, o resultado não surpreende. “Os cortes são contínuos desde 2015, o que leva à deterioração da infraestrutura e a uma série de novos limites ao trabalho docente”, afirma. “Como os professores estão inseridos em redes internacionais de investigação, o reconhecimento dessa imensa falta é intensificado pelo contraste das condições de trabalho no Brasil e no Exterior.” Contraste que aumentou no ano passado.
O questionário do Lastro foi aplicado entre agosto e setembro de 2019, primeiro ano de Jair Bolsonaro na presidência da República e um ano difícil para a educação. Os professores estavam (e seguem) sob o impacto de uma série de medidas e declarações que enfraquecem o ensino público e desmoralizam a carreira docente. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, que chegou em abril para “acalmar os ânimos”, depois de uma série de polêmicas envolvendo seu sucessor, Ricardo Vélez, colocou mais lenha na fogueira. As universidades tiveram seus recursos congelados por mais de seis meses e foram alvo de acusações, por parte de Weintraub. Sem oferecer provas, ele afirmou que as universidades promovem “balbúrdia”, mantêm “plantações de maconha” e “laboratórios de drogas”. Com os cortes, em todo o país, foram canceladas 7.590 bolsas da Capes para financiar pesquisas de pós-graduandos – o que corresponde a 8% do total. O CNPq esteve prestes a suspender o pagamento de mais de 80 mil bolsistas. Concomitantemente, o MEC apresentou à sociedade, sem um diálogo prévio com a comunidade universitária, seu projeto de financiamento para as instituições federais de ensino, o Future-se, que prevê a criação de fundos privados (abastecidos com dinheiro público) e a transferência da gestão para Organizações Sociais. “A lógica do projeto é incentivar a inovação e o empreendedorismo nas universidades, mais como produto e prestação de serviços. O Future-se estreita a atuação e a função social dessas instituições e compromete atividades de várias áreas do conhecimento”, resume o presidente da Apufsc, Carlos Alberto Marques, professor do Departamento de Metodologia de Ensino (CED), com 22 anos de UFSC.
Em setembro do ano passado, quando o Conselho Universitário promoveu uma reunião aberta e histórica para discutir o Future-se (que acabou sendo rejeitado pela UFSC), Marques se manifestou, ao lado de professores de diversas gerações, contra o projeto do governo federal. O maior auditório da universidade estava lotado naquele dia. Luana Renostro Heinen, de 33 anos, foi uma das professoras mais aplaudidas. A docente do curso de Direito leu, emocionada, uma análise jurídica, feita em conjunto com outras professoras, que apontava inconstitucionalidades no projeto federal. Embora o Future-se ainda fosse uma novidade para a comunidade acadêmica, as mudanças propostas pelo governo já eram, de certa forma, objeto de pesquisa de Luana há mais tempo.
Ela coordena o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Sociologia do Direito, onde se discute, desde o início de 2019, as relações entre direito e neoliberalismo e a “percepção de que devemos ser empreendedores de nós mesmos”. Depois do Future-se, o grupo passou a estudar também o neoliberalismo nas universidades. “Eu sentia que as pessoas queriam respostas, principalmente meus estudantes. Aquele dia foi emocionante e o momento de consolidação de uma luta”, disse a professora, que ingressou na UFSC em 2017. Sobre o que esperar para as universidades, ela destaca um sentimento de pessimismo para os próximos anos ao lado de uma esperança no longo prazo. “Acredito que colocar barreiras ao desrespeito dos direitos fundamentais vai possibilitar a sobrevivência da universidade, mas não sem retrocessos.”
Natural de Paranatinga (MT), Luana conta que a escolha pelo Direito veio de um sentimento de impotência, após conviver de perto com a violência exercida por figuras de poder, como os fazendeiros de sua cidade. “Queria poder contribuir para levar o império da lei a esses lugares em que a lei parecia não existir”. A UFSC despontou em seu caminho profissional como o ambiente de debate político que ela buscava desde a graduação. O perfil crítico e o reconhecimento nacional da pós-graduação em Direito da federal catarinense foram decisivos para a escolha. Em Florianópolis, também encontrou o contato com a natureza, a segurança e a qualidade de vida que buscava. Algumas vezes na semana, consegue ir para o campus de bicicleta – o que considera um privilégio – e pratica meditação com um grupo da UFSC. “É uma forma de cuidar da minha saúde mental e dar conta de toda essa sobrecarga de trabalho.”
Vem mais por aí
O ataque à autonomia universitária não veio apenas com a estratégia de asfixia financeira ou com a ameaça do Future-se. Ele foi direto e sem cerimônias. No ano passado, Bolsonaro quebrou a tradição na escolha dos reitores ao não indicar o primeiro colocado nas listas tríplices, elaboradas a partir de eleições internas com regras próprias de cada universidade. Dos 14 reitores nomeados no ano, Bolsonaro escolheu seis candidatos que foram os menos votados. No fim de 2019, às vésperas do Natal, o presidente editou uma Medida Provisória que impõe novas regras para a escolha dos reitores federais, tornando as consultas internas obrigatórias para a definição de uma lista tríplice a ser apresentada ao presidente da República, que escolhe, então, uma das opções. Na prática, o governo impôs procedimentos às instituições que antes podiam definir livremente as próprias regras para a escolha dos reitores.
O governo já deu sinais de que 2020 também não será fácil. As universidades começaram o ano com um orçamento menor – de R$ 122 bilhões caiu para R$ 103 bilhões -, e parte desses recursos ainda depende da aprovação do Congresso para ser liberada. O governo, em vez de realizar o contingenciamento como de costume, sugeriu aos reitores que não realizem novas despesas, paralisando a contratação para reposição de pessoal e as progressões de carreira previstas em lei. Uma portaria do ministério suspendeu a contratação de funcionários nas instituições de ensino federais.
Enquanto cria mecanismos que impactam diretamente na qualidade do ensino oferecido pelas universidades, o governo federal também trabalha para desmoralizar os servidores públicos e reduzir seus direitos. Com a aprovação da reforma da Previdência em 2019, os professores universitários terão de trabalhar mais e contribuir com alíquotas previdenciárias mais altas para se aposentar. Agora, o governo tenta aprovar uma reforma administrativa para acabar com a estabilidade no serviço público, reduzir jornada e salários dos servidores, chamados recentemente de “parasitas” pelo ministro da Economia Paulo Guedes.
As alegrias da docência
Apesar das incertezas em relação à carreira e ao futuro da universidade e mesmo com a intensificação do trabalho, os professores e professoras indicaram na pesquisa do Lastro encomendada pela Apufsc que estão satisfeitos com a maioria dos aspectos relacionados a seu trabalho na UFSC, como remuneração, plano de carreira e qualidade de vida. No topo do ranking, se somadas as respostas “satisfeito” e “muito satisfeito”, estão a experiência de trabalho (83,9%), as relações interpessoais com estudantes (83,1%), as relações interpessoais com chefias e integrantes de instâncias superiores (68,3%), a quantidade de estudantes por turma (65,5%), e as relações interpessoais com colegas de trabalho (63,6%).
São essas relações que motivam os docentes no dia a dia da universidade. Em Curitibanos, isso ficou bem claro em uma conversa com dois professores sobre carreira docente. Em meio à sobrecarga de trabalho, à falta de recursos para projetos, aos processos burocráticos que lhes tiram do foco, é dessa relação em sala de aula que vem a resposta para a pergunta “o que é o melhor de ser professor?”: os estudantes. “A gente só é o que é pelos alunos”, diz a professora Karine dos Santos. Ela e o marido, Alexandre Siminski, atuam no Departamento de Agricultura, Biodiversidade e Florestas do campus de Curitibanos, desde seu início, há dez anos.
Aos 40 anos, Karine encara a docência como uma missão e chega a se emocionar ao pensar no poder que os professores têm de mudar vidas. “Assim como os meus fizeram diferença na minha vida, sinto que posso fazer um benefício assim também na vida de alguém”, diz a professora, filha de um pedreiro e de uma auxiliar de enfermagem, natural de Caçador (SC).
A retribuição vem com o carinho e com as homenagens que costuma receber dos estudantes. Esse relacionamento com os jovens, ela diz, lhe dá também a sensação de que nunca está parada no tempo. A cada semestre uma nova turma, a maioria com seus 17 anos, chega ao campus e com eles também chegam novas perspectivas e até mesmo novas gírias. “A universidade não nos envelhece”, dizem Karine e Alexandre, surpresos com a própria conclusão.
Além de colegas de profissão, Alexandre e Karine também são casados e dividem a paixão por lecionar, pelas florestas e pelos animais. Antes de atuarem como professores nos cursos de Agronomia e Engenharia Florestal da UFSC, os dois foram colegas de graduação no curso de Agronomia, em Florianópolis, na década de 90. Ao se mudarem para Curitibanos, cidade com 40 mil habitantes, os dois enfrentaram além dos desafios comuns ao início da carreira docente, as dificuldades de um campus recém-criado. O casal abraçou intensamente a nova cidade e a nova rotina. Eles vivem em uma casa a 800 metros da UFSC e quando não estão na universidade, gostam de cuidar de sua horta particular – é um hobby, “mas também uma forma de colocar em prática o que ensinam aos alunos”.
Os ambientes familiar e acadêmico muitas vezes se confundem. O curso de pós-graduação em Ecossistemas Agrícolas e Naturais, que começou em 2016 e hoje está sob coordenação de Alexandre, foi planejado nos finais de semana, em reuniões que aconteciam na casa dos próprios professores. “É difícil desligar. Não existe isso de bateu o ponto e terminou. Ou tu estás pensando sobre algo que precisas desenvolver ou estás, literalmente, envolvido em alguma coisa,” explica Alexandre. Eles não desligam nem nas férias. Gostam de visitar unidades de conservação e as experiências das viagens acabam virando conteúdo em sala de aula.
A trajetória da Família Scheibe
A trajetória da família Scheibe ajuda a entender as mudanças na carreira de professor universitário em diferentes períodos da UFSC. Leda e Luiz Fernando Scheibe, ambos com 77 anos, começaram suas carreiras na universidade em meados da década de 60 – ele com 23 anos, formado em Geociências, e Leda aos 24, formada em História. Cristina Scheibe, a filha mais velha, tornou-se professora da UFSC em 1992.
Luiz Fernando e Leda vivenciaram as mudanças da reforma universitária de 1969 e as que vieram nos anos seguintes: a extinção das cátedras e a criação dos departamentos e centros de ensino, a semestralização (antes os cursos eram anuais) e, mais tarde, a Dedicação Exclusiva – que “foi uma grande conquista dos professores”, lembra Luiz Fernando. “Também havia mais incentivo à formação docente.”
Cristina, a filha, pegou a estagnação e depois os anos de expansão de vagas nas universidades públicas, viu seus colegas (e ela própria), serem afetados por cinco reformas previdenciárias, que tiraram direitos dos servidores, assim como viu se consolidar a cultura do produtivismo acadêmico, marcada pela valorização da publicação de artigos científicos.
Aposentado desde 2012, Luiz Fernando continua trabalhando voluntariamente na UFSC na pósgraduação. Como ele, cerca de 30% dos professores aposentados da UFSC atua de forma voluntária na universidade. Leda, aposentada desde 1997, é editora de uma revista da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
Nem os pais de Leda nem os de Luiz Fernando tinham curso superior – o perfil dos aposentados da UFSC indica que a geração anterior tinha pais com escolaridade menor em comparação com os professores que hoje estão na ativa, em que pelo menos um dos pais conseguiu se formar na universidade.