Em 64, data deu início a período de perseguição, demissões e prisões arbitrárias na universidaded+ este ano, Bolsonaro determinou ao Ministério da Defesa que fossem feitas as “comemorações devidas”
Em 1979, os estudantes Luiz Carlos Cancellier de Olivo e Marize Lippel conversavam em um ônibus da delegação da UFSC rumo ao Congresso de reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Salvador. O diálogo entre os dois está descrito em detalhes em um prontuário do antigo Departamento de Ordem e Política Social de Santa Catarina (DOPS).
O documento que aponta a vigilância e espionagem durante a ditadura civil-militar no Brasil faz parte do levantamento realizado pela Comissão Memória e Verdade da UFSC (CMV/UFSC).
Nomeada pelo Conselho Universitário em dezembro de 2014, a CMV trabalhou por dois anos coletando arquivos e depoimentos para identificar as violações dos direitos humanos e cerceamento de liberdades individuais ocorridos na comunidade da UFSC entre 1º de abril de 1964 e 5 de outubro de 1988. A criação do grupo de trabalho fez parte de um movimento nacional, iniciado, em 2011, pela Comissão Nacional da Verdade, que tinha como objetivo investigar as violações cometidas pelo regime autoritário e produzir relatórios e recomendações buscando evitar sua repetição.
Milhares de arquivos foram analisados e catalogados pela Comissão. Entre eles, documentos encontrados no Arquivo Central da UFSC, documentos solicitados ao Arquivo Nacional em Brasília, jornais e boletins impressos e até papéis recuperados do lixo nos anos 80 por um servidor técnico-administrativo que não quis se identificar. A pasta — resgatada na época de um contêiner da Comcap próximo à Reitoria — foi entregue a um membro da CMV e tinha na capa o título “Assuntos Sigilosos – 1965-1966”.
Foram colhidos também 21 depoimentos individuais e realizadas três audiências públicas. Toda a análise dos materiais resultou em um Relatório Final, com quase 800 páginas divididas em dois volumes. O documento foi apresentado pela primeira vez em maio de 2018, e detalhou casos de perseguição, censura e repressão a estudantes e professores ocorridos com anuência da administração da Universidade.
De acordo com o relatório, “ficou comprovado que o papel de espionagem, denúncia, censura, repressão e controle ideológico foi assumido em determinados períodos pela própria administração da UFSC através de membros desta ou do próprio Reitor, em consonância com os comandos militares e policiais”.
A partir de 1972, a vigilância passou a acontecer de forma estrutural com a instalação da Assessoria de Segurança da Informação (ASI) dentro da Universidade. Diretamente ligada ao Reitor, a assessoria era um braço do Serviço Nacional de Informações (SNI) – principal órgão do sistema de vigilância montado pelo regime militar. A ASI-UFSC funcionou até 1986, quando foi extinta por ato do Ministério da Educação. No entanto, a CMV aponta que relatórios detalhados de assembleias de docentes, estudantes e servidores, assim como notícias sobre eventos e reuniões continuaram chegando ao SNI até 1990, quando o órgão foi dissolvido.
O Relatório Final da Comissão Memória e Verdade ainda traz capítulos sobre a fundação da Universidade e a estreita ligação entre o regime militar e o reitor João David Ferreira Lima, que esteve à frente da UFSC entre 1961-1972 e, hoje, dá nome ao campus da Universidade em Florianópolis.
Sobre memória e resistência
Professor aposentado do Centro Tecnológico (CTC), Jean-Marie Farines foi presidente da Comissão da Memória e Verdade da UFSC. Ele destaca a relevância do trabalho realizado para a construção de uma memória coletiva da universidade. “É importante que através de coisas irrefutáveis, como um documento escrito e assinado por determinadas pessoas, se ajude a entender outras coisas.”
Farines aponta ainda que, durante o regime militar, diferentemente do que aconteceu na UFSC, houve resistência por parte das administrações de outras universidades. “É também um trabalho de memória para saber como se deu o comportamento e participação das pessoas naquele momento crucial para a vida na UFSC e no país. A revelação evidentemente não agrada a todo mundo, mas é irrefutável. Isso permite reconstruir um pedaço da história da UFSC, homenagear pessoas que foram muito perseguidas dentro e fora do campus, contar a história dessas pessoas e também contar a história de quem, dentro da universidade, se moldou muito facilmente aos desejos e linhas que estavam sendo impostos no país”.
Capa de boletins da Apufsc se posicionando contra o controle ideológico e reivindicando o voto direto para reitor
O Relatório Final da CMV também possui capítulos destacando os movimentos de resistência na Universidade. No caso do movimento estudantil, expresso principalmente na Novembrada — manifestação ocorrida em 79, quando o Diretório Central Estudantil (DCE) da UFSC organizou um protesto durante a visita do então presidente general João Figueiredo, que resultou em confronto e prisão de sete estudantes.
Quanto ao movimento docente, o documento destaca a fundação da Apufsc, em 1975, e a importância do seu papel tanto em reivindicações salariais quanto na defesa do caráter público, gratuito e democrático da UFSC, estando presente também ao lado de outros movimentos sociais que buscavam o retorno à democracia.
Professores votando por adesão à greve durante Assembleia da Apufsc
Para que não se repita
Ao final do levantamento, a Comissão Memoria e Verdade da UFSC organizou doze recomendações que foram apresentadas no Conselho Universitário em setembro de 2018. O relatório foi aprovado por unanimidade.
Seis meses após a aprovação da lista de recomendações, Jean-Marie Farines destaca a criação do Acervo da Memória e dos Direitos Humanos, que já existe digitalmente e que será reformulado e disponibilizado de forma física. A ideia é que o trabalho seja aberto para fora da Universidade e que o acervo seja “institucionalizado por meio de pessoas que trabalhem permanentemente. Isso no ponto de visto da organização, crescimento e disponibilização tanto para a pesquisa quanto para a educação”.
Entre as recomendações encaminhadas também estão a produção de um documentário sobre o tema, a recuperação e preservação das sedes da UCE e do DCE e a reavaliação de homenagens dadas a praticantes de perseguições e denúncias durante a ditadura.
Trinta e um de março de 2019
No domingo, dia 31, o Palácio do Planalto divulgou em um de seus meios de comunicação oficiais — um grupo de WhatsApp para repasse de informações a jornalistas — um vídeo em que um homem não identificado lê um texto negando o golpe de 1964. A Secretaria de Imprensa do Planalto confirmou o envio do vídeo mas diz não saber de quem é a produção material.
Na última segunda-feira (25), o porta-voz do governo, general Otávio Rêgo Barros, afirmou que o presidente Jair Bolsonaro determinou ao Ministério da Defesa que, no dia 31, fossem realizadas as “comemorações devidas” pelos 55 anos do golpe militar. Segundo Rêgo Barros, Bolsonaro não considera o movimento um golpe. Em entrevista a TV Bandeirantes na quarta-feira (27), Bolsonaro disse que regime nenhum é perfeito e que, durante o período militar, houve “alguns probleminhas”.
Na quinta-feira (28), durante um evento de comemoração dos 211 anos da Justiça Militar, Bolsonaro negou a afirmação de seu porta-voz e disse que a ideia era “rememorar” a data. A Defensoria Pública da União chegou a entrar com um pedido de liminar, atendido pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília, na sexta-feira (29), que proibiu o governo de comemorar o golpe de 64. Porém, a Advocacia-Geral da União recorreu e no sábado (30) a desembargadora de plantão Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1 Região, cassou a liminar. Com a nova decisão, as Forças Armadas ficam liberadas para realizar os eventos previstos para domingo.
De acordo com apuração do jornal Folha de S. Paulo, várias unidades militares já haviam antecipado a celebração na sexta e lido uma “ordem do dia” encaminhada pelo Ministério da Defesa que ignora o caráter autoritário do regime.
V.C. / N.O.