Em sessão aberta, que durou quase quatro horas, o Conselho Universitário (CUn) da UFSC rejeitou, integralmente, a adesão da instituição ao Future-se, programa do governo federal para o ensino superior. O Garapuvu, maior auditório da universidade, ficou lotado de estudantes, professores e técnicos-administrativos. Muita gente teve de acompanhar do lado de fora.
O presidente da Apufsc, Bebeto Marques, que participou do Grupo de Trabalho criado pela administração central para analisar o Future-se, foi o primeiro a se manifestar sobre o projeto do Ministério da Educação. “Precisamos agir como instituições do Estado brasileiro, em defesa de um bem público e de sua função. Uma instituição que deve servir a toda a sociedade e não apenas a uma parte dela”, disse em seu discurso. “Empreender e inovar devem ser objetivos permanentes da universidade, mas o sentido empregado no Programa Future-se é o de empresarização da universidade. Na verdade, esse discurso de modernização, via o empreendedorismo, contém a ideia de transformar os avanços científicos em inovações comerciáveis e de nos transformar em apenas fornecedores de consultorias e vendas de serviços e não um ente ativo em PED.” (Leia na íntegra abaixo)
Outros representantes do GT também se manifestaram, assim como estudantes, representantes dos sindicatos e diretores dos Centros de Ensino – todos se posicionaram contra o pograma federal. “Esperamos que todas as 63 instituições federais de ensino superior se posionem nesse sentido”, disse Aureo Moraes, chefe de gabinete da reitoria e coordenador do Grupo de Trabalho.
Segundo o reitor Ubaldo Balthazar, com o resultado da consulta feita ao CUn sobre o Future-se, a universidade deu seu recado para a sociedade brasileira e, principalmente, para o governo brasileiro. “A nossa luta vai ser grande, mas não vai ser inglória. Nós vamos lutar para alcançar uma Universidade melhor do que essa que está aqui”, completou.
O Conselho Universitário deve realizar mais uma reunião aberta na semana que vem para deliberar sobre os pontos aprovados na Assembleia Geral Universitária, realizada na segunda-feira.
Leia a íntegra da moção do Conselho Universitário sobre o programa Future-se:
O Conselho Universitário da UFSC, reunido em sessão aberta, realizada em 3 de setembro de 2019, vem a público manifestar seu posicionamento de rejeição integral à proposta do Ministério da Educação, expressa no programa “Future-se”.
Essa decisão é resultado também do posicionamento de um conjunto de Unidades Acadêmicas, além das entidades representativas de docentes, servidores técnico-administrativos em Educação e de estudantes, que foi construída a partir da análise e discussões da minuta de PL disponibilizada pelo MEC. É resultado também da atividade de Grupo de Trabalho, a quem coube subsidiar as discussões e induzir debates e reflexões sobre a proposta do MEC.
Num contexto de medidas de bloqueio e drásticos cortes orçamentários ao qual estão submetidas as IFEs e da absoluta ausência de diálogo para a propositura desse Programa, a análise do PL trouxe muitas incertezas quanto aos reais benefícios em prol da manutenção financeira de todo o sistema universitário público e muitas dúvidas a respeito dos impactos acadêmicos que o Programa pode trazer às IFEs. O PL ignora ainda aspectos importantes, como:
- Áreas acadêmicas sem conexão imediata com as necessidades do mercadod+
- O papel das unidades descentralizadas das IFEs e sua importância no desenvolvimento regionald+
- A alteração de leis que confrontam as políticas públicas de educação consolidadasd+
- A autonomia universitária prevista no Artigo 207 da Constituição Federal de 1988d+
- As iniciativas das IFEs na área de Internacionalizaçãod+
- A inserção fundamental do SUS como único sistema presente nos hospitais universitários.
Através do posicionamento de rejeição do Programa Future-se reforçamos fortemente a defesa inarredável de princípios inegociáveis das Universidades Públicas Brasileiras:
– a plena autonomia constitucional, de gestão financeira, administrativa e pedagógicad+
– o respeito à democracia interna das IFEsd+
– a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensãod+
– o financiamento do Sistema de Ensino Superior Público como dever do Estadod+
– a garantia de Políticas estruturantes de apoio à permanência estudantild+
– a preservação das múltiplas vocações, da pluralidade acadêmica e da dimensão social das IFEs.
O Conselho Universitário, cumprindo sua função de instância máxima de deliberação da UFSC, reitera, por meio deste documento, sua exigência que o governo federal desbloqueie imediatamente os recursos orçamentários que as universidades têm direito. Com a presente decisão também reiteramos nossa permanente disposição ao diálogo com o MEC para o aperfeiçoamento das IFES.
Leia a íntegra do discurso do presidente da Apufsc, Bebeto Marques, ou assista clicando aqui
Caro Reitor, Conselheiros e demais aqui presentes,
O Programa Future-se é proposto por um Governo que defende e vem aplicando medidas administrativas para a redução do tamanho e do papel do Estado Brasileiro, cuja receita principal é a drástica redução dos gastos públicos em alguns setores, especialmente os sociais. Suas medidas são também justificadas pela tese da ineficiência do serviço público, das instituições e dos servidores públicos. Nisso estão incluídas as instituições federais de pesquisa e produção de conhecimento como o IBGE, INPE, INEP, FIOCRUZ, FINEP, IBAMA, ICMBIO, ANCINE, ANVISA, FUNAI, BNDES, CNPq, CAPES e, por fim, as Universidades e Institutos Federais. Todos alvos de duras críticas e ameaças que não encontram fundamento técnico.
Por meio da asfixia orçamentária e do cerceamento da autonomia institucional, o governo aterroriza as universidades, para então propor o que para ele é um remédio, o Future-se. Somos acusados de produzir balbúrdia, de não realizarmos pesquisas importantes e de fazer doutrinação política de esquerda. Mas as agressões sofridas pelas instituições públicas e seus servidores não são isoladas e nem desconexas. Elas proliferam o ódio na sociedade e, como disse antes, visam desacreditar a necessidade e a função do Estado e da máquina pública. Desde já, devemos dizer que repudiamos tudo isso.
Portanto, é nesse contexto que o MEC apresenta o Future-se. É nossa obrigação falar com a sociedade sobre tais argumentos e justificativas, em particular quando o governo alega que falta dinheiro ao país para financiar as universidades. Isso é algo que tem que ser visto de maneira relativa, pois tal justificativa pode estar sendo usada apenas para o governo implementar a sua própria agenda política.
Aqui, então, cabem algumas perguntas: Por que não faltam recursos para pagar os juros da dívida pública que favorecem os bancos e consomem cerca de 40% da arrecadação federal? Por que não faltam recursos para financiar a produção agropecuária brasileira? Por que não faltam recursos para dar subsídios às indústrias? Em contrapartida, por que faltam recursos para manter um sistema que é tão essencial ao desenvolvimento do país, que produz 90% da ciência nacional e qualifica profissionalmente as pessoas, como são as universidades federais? O discurso de falta de recursos, na verdade, é mais uma questão de onde você aloca os recursos.
Nesse sentido, caro Reitor e Conselheiros, as universidades não podem agir como uma instituição de governo, mendicante por recursos e pedindo maior atenção de sua parte – e não importa a matiz ideológica do governo de plantão. Precisamos agir como instituições do Estado brasileiro, em defesa de um bem público e de sua função. Uma instituição que deve servir a toda a sociedade e não apenas a uma parte dela.
Ao analisarmos atentamente o PL do Future-se, encontramos uma lógica que o estrutura, ainda que o mesmo seja muito mal elaborado, desconexo e invasivo do ponto de vista legal, pois serão necessárias alterações de 18 leis e 2 artigos da Constituição Federal. Nele se desenha e quer se impor um novo modelo de Universidade.
O conjunto de 45 artigos do Future-se direciona e organiza toda a universidade ao empreendedorismo e à inovação, cujo ponto de sustentação econômica é a constituição de fundos financeiros da ordem de R$ 102 bilhões, que serão cotados em bolsa de valores. As universidades só terão acesso e poderão internalizar tais recursos mediante contratos de gestão com Organizações Privadas, as Organizações Sociais. Tais contratos devem estar ligados a 3 eixos: 1) gestão e empreendedorismo, 2) pesquisa e inovação e 3) internacionalização.
Essa engenharia gerencial e financeira será tutelada nacionalmente pelo MEC, por meio de um comitê gestor por ele próprio constituído. É algo que hoje inexiste e é a expressão da subtração e violação de nossa autonomia. Assim, pela vontade do governo, a universidade deve ser reordenada e voltar-se ao setor privado – progressivamente financiador de todas as IFES. Esse é o desenho de universidade do Future-se.
Seria um equívoco ser contra que a inteligência científica, as pesquisas e a inovação por nós produzida deixem de contribuir para o fortalecimento da economia nacional, a exemplo da indústria, possibilitando que esta gere mais empregos e renda à população. Sabemos que o declínio da atividade industrial, hoje apenas em 11,3% do PIB nacional, tem produzido o nosso alto índice de desemprego e uma economia importadora de bens e produtos de valor agregado.
Nesse sentido, há um movimento errático nas políticas do governo atual, a exemplo do desmonte do Sistema Nacional de CET. Seus efeitos são nocivos às universidades federais, que são as principais produtoras de pesquisa, inovação e formação qualificada de mão de obra. A fragilização desse sistema diminui ainda mais a nossa capacidade de oferecer aos setores produtivos soluções inovativas para agregar valor na cadeia produtiva. Como esperar, então, que esse mesmo setor produtivo, enfraquecido, financie as universidades aderentes ao Future-se? A direção deve ser outra e em sentido inverso. Ou seja, o que necessitamos é de mais financiamento público em CET e às universidades. Precisamos de mais Estado, para fortalecer e alavancar os setores produtivos de nosso país.
De todo modo, mesmo que nos engajássemos a uma perspectiva mais pragmática de universidade, como apontado no Future-se, isso jamais deveria implicar que toda a Universidade fosse reformatada, que toda sua administração, arcabouço legal, finanças e energias fossem canalizadas exclusivamente para esse fim e setor da economia.
Já temos o Marco Legal de CTEI que nos permite ter uma relação ajustada com o setor privado, ainda que possa ser melhorado. Portanto, não necessitamos de uma nova instituição de natureza privada, como são as OSs, para realizar tal mediação. Também aqui a direção está em sentido contrário. No modelo do Future-se serão tais organizações que irão receber os recursos dos fundos, a maior parte deles públicos, para com isso estabelecer condicionantes para internalizá-los nas universidades – inclusive com prerrogativas para interferir destrutivamente na carreira docente e dos TAEs, bem como nas atividades didáticas (Art. 4º, inciso II).
Para piorar, a possibilidade de que nossos Departamentos criem Sociedades de Propósito Específico (Art. 16º) contribuirá com a mudança de mentalidade pública que nos caracteriza atualmente. Transformará o modo de pensar, organizar e governar as universidades como se fossem empresas. Será o ovo da serpente para que a cultura empresarial ganhe forma e a universidade passe a ser um ator empresarial.
Empreender e inovar devem ser objetivos permanentes da universidade, mas o sentido empregado no Programa Future-se é o de empresarização da universidade. Na verdade, esse discurso de modernização, via o empreendedorismo, contém a ideia de transformar os avanços científicos em inovações comerciáveis e de nos transformar em apenas fornecedores de consultorias e vendas de serviços e não um ente ativo em PED. Isso transfigura e estreita a função social da universidade.
A questão é que quando este discurso tenta invadir a totalidade do pensamento e áreas que compõem a universidade, sua adoção fará com que a mesma seja tomada por um tempo curto, que a asfixia num desejo de ser imediatamente e apenas útil, servindo ao lucro e pouco ao bem-estar de todos. Temos que ter cuidado: a Universidade tem uma responsabilidade pública maior, na concepção de bem público, não devemos reduzir sua responsabilidade pública ao empreendedorismo.
Se hoje temos uma universidade pública sendo basicamente financiada para a manutenção do ensino, por meio do Future-se se tencionará que a extensão passe a financiar a pesquisa direcionada apenas à inovação, correndo-se o risco enorme de atrofiar ou criar assimetrias insanáveis entre as áreas do conhecimento e entre as 63 universidades federais.
O que se desenha no Future-se é, portanto, uma grande reforma universitária, sem nos envolver diretamente na sua propositura. É um cheque em branco, uma aventura. Vende-se a ideia de que haverá interesse da iniciativa privada em financiar ad aeternum as universidades, oferecendo como atrativo inicial o patrimônio público para compor um virtual fundo de financiamento, de gestão privada. É um modelo sem similar em outros países, dado que neles, ao contrário, são os recursos públicos que têm financiado a PED, a exemplo dos EUA e Europa.
Portanto, o Future-se não é o modelo de universidade que defendemos. E foi essa a interpretação de nosso Conselho de Representantes. É sobre esse modelo que nosso Conselho Universitário deve se posicionar, com a ressalva de que hoje apenas expressará uma posição de natureza política, dado que não está sobre a mesa a definição de aderir ou não ao Programa, pois o mesmo não é uma Lei. Mas sua rejeição deve ser em base a argumentos, apontando desde já para toda a sociedade catarinense e aos nossos parlamentares, as razões que não tornam esse Programa uma solução e sim um erro. Apontar que sua natureza, finalidade e estruturação produzirá a desestruturação do atual sistema federal de ensino superior. Não será um Programa temporário ou experimental que visa gerar recursos adicionais para o fortalecimento financeiro das universidades. Pelo contrário, o que nele há são indícios fortes de substituição no financiamento público a todo o sistema nacional de ensino superior público. E isso é uma afronta à nossa Constituição Federal.
Caros conselheiros, às vezes, dizer um não para um caminho que nos é ofertado pode ser a melhor forma de se construir outro muito melhor. E se o MEC está de fato preocupado e quer aprimorar as universidades, então que não envie o PL ao Congresso Nacional e estabeleça um verdadeiro processo de discussão com as universidades, por meio da ANDIFES. Nós temos muito a dizer e a propor, e o faremos com o espírito e compromisso público que desde sempre temos demonstrado.
Por fim, é hora de reafirmarmos que há aspectos inegociáveis numa eventual discussão sobre mudanças nas universidades. Isso envolve a:
1- Garantia da autonomia universitária estabelecida pelo Art. 207 da CF e do caráter público e gratuito do ensino superiord+
2- Defesa da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensãod+
3- Garantia de financiamento público adequado para a manutenção e funcionamento das IFESd+
4- Superação dos entraves legais que impedem as IFES de atuarem dentro dos limites do Marco Legal para a CTEI. Em especial a flexibilização dos limites de captação e uso dos recursos próprio por elas captados.
5- Garantia de preservação das carreiras públicas nas IFES, com a manutenção dos concursos e da contratação via RJU, da estabilidade e também, no caso dos docentes, da preservação da Dedicação Exclusiva.
6- Defesa da Universidade como instituição pública, expressão da sociedade democrática e pluricultural, inspirada nos ideais de liberdade, de respeito pela diferença e da solidariedade.
A UFSC merece respeito. Nos orgulhamos de nossa história. Ela é exitosa e só foi possível porque a população catarinense e brasileira nos financia. São muitos os lutadores que defenderam e idealistas que edificaram nossa Universidade, a exemplo do ex-reitor Prof. Stemmer, do líder estudantil Adolfo Luís Dias, do técnico-administrativo José de Assis Fo e do professor Cancellier. A todos eles nossa homenagem e inspiração política.
Ilana Cardial
Vinicius Claudio (Fotos)