Carlos Heitor Cony, no artigo “Refresco de memória”, publicado no jornal Folha de S. Paulo de 15 de julho de 2008, lembra que Gilmar Mendes, o juiz que concedeu dois Habeas Corpus em tempo recorde ao bandido Daniel Dantas, foi advogado-geral-da-união nos governos de FHC, tendo sido indicado por aquele para ocupar uma vaga no Supremo, mesmo sofrendo processo judicial por improbidade administrativa, ação promovida em 2002 por um procurador da República que o acusava de enriquecimento ilícito. Sua indicação acabou ratificada devido ao “rolo compressor do governo”, que quebrou a resistência da maioria dos senadores, embora seu nome tenha sido recusado por quinze parlamentares. Conforme o artigo, sua indicação foi um prêmio pelo papel destacado que ele teve durante os processos de privatizações.
Por outro lado, Walter Fanganiello Maierovitch, um dos mais respeitados estudiosos brasileiros sobre crime organizado, sem meias palavras pede o impeachment de Gilmar Mendes, reivindicação feita em longo e bem fundamentado artigo, tornado público na revista Carta Capital (edição nº 505, de 23 de julho de 2008), e que é respaldada, entre outros argumentos, no fato de Gilmar Mendes ter atropelado duas instâncias jurídicas, que são o Tribunal Regional Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o que é inconstitucional e atitude inadmissível a quem, como presidente da suprema corte de justiça do Brasil, deveria zelar pelo rigor de nossas leis.
Há também o fato de que, em gravação feita pela Polícia Federal com autorização judicial, emissários de Dantas afirmam que apenas receiam os tribunais de primeira instância, nada tremendo do Supremo Tribunal Federal (e também do STJ), onde teriam ótimas relações e trânsito livre. Juntando estes fatos…
Já para o Juiz Fausto Martin de Sanctis, responsável pelos pedidos de prisão do megabandido Dantas, tentou-se passar a pecha de “messiânico”, perseguidor maníaco e raivoso – simplesmente porque leva a sério seu papel e é um juiz que faz o que todo o juiz deveria fazer. Fica a impressão de que ele é a exceção, onde a exceção virou regra – e que é a chalaça, o sorriso de bonomia em rostos gordos como o do juiz Mendes, seu caminhar aberto e debochado de quem nada teme e não tem vergonha. Um medalhão.
Isto tudo, como não poderia deixar de ser, acabou por irritar ainda mais a ferida aberta do caso ainda não encerrado da URP. Lembro quando alguns professores – entre eles estava eu – foram recebidos no confortável e bem equipado escritório do advogado geral da união em Santa Catarina, local em que fomos para tentar reverter o processo que se abatia sobre nós. Lá quem nos recebeu foram dois moços e uma senhora, todos muitíssimo bem vestidos – chegavam a rebrilhar – e que se referiram ao Estado de Direito a que todos nós deveríamos estar submetidos. Na ocasião, lembro que disse a eles que este estado de direito era muito relativo, já que oferecia segurança jurídica apenas para alguns. Reafirmo agora: pode ser um estado de direito para bandidos semelhantes ao Dantas ou ao Cacciola (outro que chegou ao Brasil desalgemado e com ares de chalaça), ou para o Gilmar Mendes. Ou mesmo para aquele casal composto por uma juíza e um desembargador que davam sentenças favoráveis a traficantes, e com eles mantinham relações pessoaisd+ estado tão de direito a estes dois que a pior pena a eles imposta foi a da aposentadoria com salário integral, embora tenham incorrido em diversos crimes previstos no código penal, como o de formação de quadrilha, associação ao tráfico, corrupção e improbidade administrativa, só para ficar em alguns.
Que Estado de Direito é este que tira um direito reconhecido em “sentença transitada em julgado” (isto é: sentença definitiva)? O estado de direito, entre outras coisas, pressupõe segurança jurídica, o que até agora não existe para os não Gilmares, os não Cacciolas,os não Dantas – enfim, os não-medalhões que somos nós professores universitários. A esperança fica por conta das centenas de juízes, Brasil afora, que repudiaram veementemente as atitudes do juiz Gilmar Mendes, solidarizando-se com o Juiz Fausto de Sanctis. A esperança é a de que, daqui para frente, talvez encontremos um destes.