E vá dizer àquela estranha Cecily,
Que acreditava que eu seria grande,
Raios partam a vida e quem lá ande.
Fernando Pessoa
A cada semestre, um grande número de professores do ensino fundamental e médio inscreve-se no processo de seleção de alunos do Programa de Pós-Graduação em Lingüística, do qual, há quatro anos, sou o coordenador. Essa estupenda massa de homens e mulheres, com sinceridade comovente, vem em busca de conhecimentos próprios a encorpar a sua prática docente. Mas não encontra o que quer. Os cursos de mestrado e doutorado em Lingüística, da prova de admissão à defesa de trabalho de conclusão, são inteiramente concebidos para formar pesquisadores, e não professores mais qualificados. O saber cultivado no âmbito do Programa é radicalmente abstrato, especializado, esotérico. É estruturalmente opaco a qualquer forma de tradução, aplicação ou transposição capaz de incidir sobre o cotidiano das aulas de português nas escolas.
Imagino que essa dissensão entre o saber acadêmico e as questões que afetam as pessoas na vida comum não diga respeito apenas à Lingüística, mas, de modo geral, a todos os campos das chamadas Humanidades.
Há quem suponha que isso não seja um problema e que a Universidade possa dar as costas para o mundo real. Para esses colegas, tudo se passa como se a ciência e a filosofia tivessem uma dinâmica própria, autônoma, auto-sustentável, com a vantagem adicional de, vez por outra, um conhecimento à primeira vista estratosférico ganhar súbita e surpreendente aplicabilidade, como sucedeu às meditações cartesianas, que um belo dia desceram dos céus filosóficos para sustentar as muito terrenas engenharias.
Enquanto um novo Descartes não chega, o que legitima a pesquisa nas Humanidades? A resposta parece óbvia: a Capes e o CNPq, que, com seus mecanismos de avaliação, distribuem prestígios e poderes e decidem o que é pertinente e o que não é. Mas será o trabalho dessas agências suficiente para a tarefa de legitimação da atividade acadêmica? Os que habitam o chamado “outro lado do rio” descobriram que não. Não estou entre aqueles que pensam que as consultorias e outras formas de contrato com empresas sejam só um meio de complementação salarial. São também, a meu juízo, uma aliança com forças políticas que, como contrapartida aos serviços prestados, oferecem, além de remuneração, legitimidade social para o CTC.
É, pois, falso dizer que o que dirige a Universidade é o mérito acadêmico, se é que tal coisa existe. Restringir-se à referência ao mérito acadêmico é dar a pensar que o está em jogo é um critério puramente epistemológico, desde que nos entendamos sobre o que seja a epistemologia, coisa que os filósofos da ciência até hoje não resolveram. Em todo caso, mesmo que o critério puramente epistemológico existisse, a legitimidade do CTC, advindo em grande medida das empresas, é adicional e, talvez, principalmente regulada por algo que se coloca em um terreno muito diverso daquele em que a dicotomia verdade/falsidade opera. Refiro-me à eficácia, outra palavrinha, aliás, sobre cujo conteúdo haveria muito o que discutir.
Creio, sinceramente, que essa eficácia CTCista é o que hoje garante a legitimidade da Universidade. As Humanidades, por sua vez, só sobrevivem por concessão do CTC, senhor de fato e direito dessa legitimidade.
Enquanto não se derem conta de que precisam criar, com urgência, formas próprias de legitimação social (a eficácia empresarial certamente não é a única delas), os professores (ou, como a maioria prefere, os pesquisadores) das Humanidades estaremos condenados a ser um apêndice do CTC. Permaneceremos infantilizados pelo conto de fada de que o mérito acadêmico nos fará – ao menos alguns de nós, os melhores – grandes.