A posse de um novo Reitor é um momento oportuno para refletirmos sobre os processos democráticos dentro da universidade. No Brasil costumamos escolher o Reitor através de eleições semelhantes as que elegemos vereadores, deputados e governadores. Porém, absolutamente nenhuma das mais reconhecidas universidades escolhem seus dirigentes máximos desta forma “democrática”.
Em geral, nossas eleições para Reitor além de serem demasiadamente histéricas, relativamente caras e muitas vezes fratricidas, pouco coadunam com o ethos acadêmico. Quando há espaço para que aventureiros queiram dar o bote a cada 4 anos, é sinal que há algo de impostura democrática nisto. Uma universidade não pode ficar a reboque dos pequenos grupos que loteiam entre si os espaços de poder com uma perspectiva aparelhista.
Passada a “festa”, agora é momento de avançar na construção de um “projeto UFSC” fundado numa preocupação institucional que tenha a necessária unidade de forças para enfrentar o MEC/MPOG nas “n” situações da vida universitária, como, por exemplo, em buscar saídas definitivas para a gravíssima situação da URP. O que é mais aberrante: ter metade dos colegas ganhando 20% menos, ou ter a outra metade perdendo 1/3 dos salários pelo resto de suas vidas?
Mas, para isto cabe debater o processo de escolha do Reitor, repensá-lo, para que na próxima vez ele se realize de uma melhor forma, diferente da atual, de corte populista.
O movimento deflagrado em 2007 pela renovação da Apufsc não se esgota nele mesmo, mas é parte dum movimento maior de renovação da nossa própria universidade, visando dotá-la de um vigor e reconhecimento ainda maior. Estamos unidos tanto na crítica ao sindicalismo esvaziado e suas práticas ilegítimas, quanto na convicção de que a universidade tem uma dinâmica acadêmica/ política própria que a distingue de outras instituições. Esta dinâmica necessariamente molda, por exemplo, seja um tipo de sindicalismo muito diferente do convencional, seja um processo democrático não populista, pois a democracia na universidade necessariamente é qualificada, não refletindo apenas a capacidade de mobilização de suas massas.
Ultrapassados os tempos eleitorais, cabe abrir este debate sobre a qualificação da democracia universitária, sobre os limites e alcances da mesma, o que exige uma discussão mais ampla sobre a própria universidade.
A UFSC carece dum real debate a respeito disto (apesar de todas as eleições diretas que aqui são feitas inercialmente), especialmente o enfrentamento do populismo dominante com argumentos consistentes e convincentes. Comecemos o debate fazendo a crítica do livro organizado por Rampinelli, Alvim e Rodrigues (“Universidade: a democracia ameaçada”), onde inclusive consta um artigo meu, do qual ressalto no momento o seguinte parágrafo:
Cabe recordar que, face ao seu caráter de aspirar à universalidade, nos últimos séculos a universidade tornou-se uma instituição inseparável da idéia de democracia e do ideal da democratização do saber (Chauí). Mas, internamente na universidade há situações diferenciadas que qualificam a democracia e impedem que ela seja uma república igualitária: a valorização do mérito e da qualidade acadêmica (“o princípio da autoridade na universidade deve fundar-se no saber e capacidade produtiva” – Tragtenberg, 1982: 72)d+ e a existência de distintas corporações com interesses próprios: os que estão de passagem na vida universitária (corpo discente), e os que permanecem (corpo docente e servidores). O poder na universidade tem um inelutável componente de liderança intelectual. Darcy Ribeiro (1978: 231), angustiado com estas contingências que definem “o caráter não-igualitário da comunidade universitária”, nos deixou a pergunta: “como enfrentá-las para anular seus efeitos mais negativos?”
Não tenho preconceito para com a forma populista de democracia. Laclau aqui muito ajuda, pois esclarece que o populismo é um modo legítimo da ação política, havendo pelo menos dois tipos: o autoritário, e o que possibilita a sociedade se auto-organizar.
Porém, entendo que ele é fatal se aplicado para a instituição universitária, sendo uma das fontes principais da crise contemporânea da universidade brasileira, pois a deixa cativa das forças internas, além de deformá-la pelo viés do jogo de poder fundado na mera disputa por aparelhos. Por um lado, isto impede a crucial participação exógena oxigenadora: afinal, somos ou não uma universidade paga por toda a sociedade? Se é salutar algum grau de participação dos estudantes e servidores na gestão universitária, a partir de onde haveria um peso excessivo destes setores? Como é a experiência internacional aqui, especialmente das universidades mais destacadas?
Por outro lado, porque um estudante não pode ser eleito Reitor? Sempre é bom relembrar. A gênese do ideal democrático deu-se na antiga Grécia com base no pressuposto de que, como a atividade política não é para ser feita por especialistas, qualquer um pode exercer o poder, pois todos são iguais. Sendo a democracia, portanto, um regime de iguais, os gregos escolhiam os ocupantes dos cargos políticos através de sorteios ou usavam do critério da rotatividade.
A perspectiva populista dissimula que a própria realização de eleições contém em si um princípio aristocrático, pois elas implicam em escolher os melhores. Ou seja: todo poder, inclusive o democrático, é oligárquico, advertiu Michels. Se é quimérica a esperança de realizar plenamente uma democracia total, isto não significa que seja preferível abandonar os procedimentos democráticos para exercitar o poder, que eles não tenham legitimidade, pois não temos, até o presente, outra forma melhor de resolver os conflitos e conviver com as diferenças. Churchill sabiamente definiu: a democracia é o pior dos regimes, depois de todos os outros.
Porém, a democracia não é um elixir para todos os problemas, especialmente não é a fórmula adequada, pelo menos na sua forma clássica do voto universal, para os conflitos intrínsecos ao poder acadêmico, os quais exigem para sua resolução, necessariamente, elementos de mérito, excelência e qualidade. A intrínseca desigualdade dos diferentes corpos que compõem a universidade (discente, docente e servidores) impede que a escolha dos seus dirigentes seja feita pelo voto universal, gerando seus inúmeros colegiados. A teoria democrática pluralista (Hirst) permite compreender melhor esta solução polifônica para espaços, como o universitário, onde convivem grupos diferentes que exigem, cada qual, uma representação própria e qualificada, processos de negociação corporativa.
Portanto, mesmo que a singularidade da universidade impeça mais fortemente a democracia tout court, a admissão da presença de uma intrínseca dimensão aristocrática na condução da mesma não nega a possibilidade do exercício de uma democracia acadêmica própria à complexidade da vida universitária. Além do mais, a democracia não se reduz a procedimentos, os quais, ainda que indispensáveis, são elementos parciais da mesma. Ela se afirma quando a universidade define suas próprias regras e se auto-governa (inclusive ao arrepio da Lei, como aliás costuma ocorrer nos processos eleitorais universitários) pois, ensina Castoriadis, o movimento de auto-instituição da sociedade define a essência do fenômeno democrático.
Referências:
Maurício Tragtenberg. Sobre educação, política e sindicalismo. Cortez, 1982.
Darcy Ribeiro. A universidade necessária. Paz e Terra, 1978 (3ª ed.).