A necessidade de se rever a estrutura do sindicalismo de Estado vigente no Brasil, para ir além de seu caráter burocrático, corporativo e mercantil, é uma proposição reclamada por muitas vozes. Por outro lado, em tempos neoliberais e de crises identitárias, a própria necessidade do sindicato como ente representante de um coletivo, e não de profissões, também tem sido questionada – embora nem de forma ad doc têm sido apresentadas formas alternativas que substituam essa entidade.
Também os regimes ditatoriais fecham os sindicatos quando os mesmos são partícipes de lutas democráticas em conjunto com a sociedade civil.
Sabemos também que, mesmo sem sindicatos, os trabalhadores, em diversos países e em diferentes momentos históricos, souberam organizar-se coletivamente para se defender, até mesmo nas prisões.
No caso brasileiro, já no final do século XIX, mas com iniciativas embora muito incipientes já no século anterior, as primeiras organizações coletivas dos trabalhadores tinham na ajuda mútua o laço fundamental. Muitas lutas de resistência, até mesmo com expressivas greves – não legalizadas –, contribuíram para um instituinte, não revolucionário, mas de reconhecimentos dos direitos da condição de ser trabalhador.
Na determinação régia de 3 de setembro de 1771, já era notificado o reconhecimento de antigos grêmios, organizados por ofícios em 24 corporações. Registra-se também a organização corporativa em confrarias de escravos que tinham, entre outras, a finalidade de obter recursos para a compra de “cartas de alforria”, e outras manifestações do espírito associativo, com destaque para a representada por Chico Rei, em Minas Gerais, no começo do século XVIII, que chegou a adquirir uma mina de ouro, em Vila Rica, para, com a venda do produto, pagar a liberdade de outros escravos (conforme Diogo de Vasconcelos, em sua História Antiga de Minas).
Na forma de reivindicações para fazer valer seus direitos, além de assistenciais e de recreação, as organizações multiplicam-se quando o país entra na sua fase industrial.
A Constituição de 1891 fala, no artigo 72, parágrafo 8o, da liberdade de associação profissional, mas um pronunciamento do Supremo Tribunal lembra que isso não poderia ser “manobra fraudulenta” (prevista no Código Penal) para fazer greves, então proibidas.
Assim o mutualismo prossegue, apesar das coibições e medidas repressivas, e no início do século XX as primeiras federações – até mesmo um projeto de sindicato agrícola (janeiro de 1903) e, na mesma década, as sociedades cooperativas e sindicatos, incluindo os profissionais liberais – expandem-se, apesar do difícil reconhecimento.
Com a revolução de 1930, passa o sindicato a ser reconhecido como órgão que possui função pública, ou seja, coloca-se um complicado desafio: tratar como direito o trabalho formado então como mercadoria.
Na Constituição de 1934, o reconhecimento da investidura sindical deixa de se basear no conceito de corpo coletivo e sindicato único, para a autonomia, perfazendo um crescimento de 32 sindicatos de empregados em 1931 para 234 em 1937. Neste ano, por ato ditatorial do presidente da República, o Congresso foi dissolvido e promulgada uma nova Constituição, com o apoio das Forças Armadas. Cria-se o sindicalismo de Estado: se de um lado o sindicato representa legalmente todos os que participam da categoria, por outro lado tal representação era uma concessão do Estado, autorizada pelo governo, dependendo das nuances políticas e do enquadramento dos objetivos e ações sindicais nos limites da autoridade política. Mas, ressalte-se, possibilitava os contratos coletivos de trabalho, “privilégio” que ainda hoje não têm os docentes federais, apesar de governados pelo PT, PC do B, PDT, PTB, PSB, entre outras agremiações partidárias que dizem defender os interesses dos trabalhadores.
A garantia de então, para a manutenção do sindicato, foi a criação do imposto sindical, tornado compulsório na folha de pagamento dos associados e de todos os que participam da categoria.
Em suma, nasce no Brasil, no século XX, o sindicato oficializado e antigreve, como política de Estado, para “civilizar” ou modernizar a relação capital e trabalho.
Mas o sindicalismo de Estado, que tem resistido aos diferentes períodos da história contemporânea com a ajuda do imposto sindical, não acomodou todos os conflitos urbanos e rurais num país de intensa exploração e desigualdade social. Mesmo porque tal sindicalismo implica, para seu reconhecimento legal, a aceitação das regras do Estado, incluindo, claro, suas penalidades.
Durante o regime instaurado com o golpe de 1964, quase nada precisou ser alterado ou atualizado às feições autoritárias. O governo militar podia intervir sem constrangimentos de nenhuma ordem nos sindicatos mais combativos, ou seja, a estrutura sindical já continha essa “atualização” autoritária como sindicalismo de Estado.
A transição democrática, simbolizada no governo civil de 1985 e na promulgação da Constituição de 1988, traz novidades no âmbito da liberdade de organização, mas mantendo o imposto sindical e a estrutura sindical intactos. Os próprios sindicalistas que contestavam essa estrutura foram aos poucos incorporando os seus elementos de sustentação, tais como o imposto sindical e as federações e confederações, onde se acumulam autocraticamente as cúpulas sindicais e corporativas.
No âmbito do funcionalismo federal, a criação das associações de professores e, posteriormente, a Andes (associando docentes, funcionários federais, estaduais e privados) foi de fato a significativa novidade: o associativismo como ente coletivo autônomo sem a tutela do Estado.
Disso resulta parte de suas tensões. De que maneira manter-se como associativismo autônomo numa estrutura e legalidade trabalhista corporativa e de Estado? Como defender os direitos dos seus associados perante o Judiciário se não tiver o reconhecimento legal como sindicato? E, sem essa força jurídica, como fazer valer os “acordos” negociados? Sabemos, na prática, como os governos têm abusado dessa situação.
A novidade de antes, Apufsc e Andes, é agora posta como velha ante a reconversão conservadora que ataca a autonomia e a necessidade política e social de laços não fetichizados, ou seja, comunitários.
A mudança da Andes para o Andes sindicato, evitando pulverizar as universidades em vários sindicatos por universidades ou profissões, norteou-se pelo esforço de manter-se como representante de um coletivo, o ser docente, articulando o local com o nacional, o interesse especializado com o geral.
Esta tensão continua. O que se formou como novidade, como atual, foi levado a meter um pé no sindicalismo de Estado, no anacrônico, atendendo às demandas dos próprios docentes em terem seus direitos recorrentemente violados e serem obrigados a recorreram ao Judiciário.
E o que se apresenta agora, face ao avanço neoliberal, é uma reconversão conservadora, em nome de um novo que é velho, ou seja, consolida as alterações legislativas e jurisprudenciais dos últimos anos que consagram a perda dos direitos dos trabalhadores e suas garantias conquistadas ao longo de décadas de lutas.
Essa reconversão patronal e conservadora é um fato e, evidentemente, apresenta como reforma sindical não fazer avançar a novidade da autonomia sindical para além da velha estrutura do sindicalismo de Estado. Ao contrário, consolida e mesmo retrocede em alguns aspectos próprios daquele ambiente autoritário, não completamente pretérito, e por isso mesmo, como renovação, é uma contradição nos próprios termos.
Seguramente, o elemento comprobatório desse fato é a reforma sindical e trabalhista anunciada pelo governo federal, elaborada de forma parceira com os representantes classistas e patronais. Sinalizações desse encaminhamento está presente na emenda que a Câmara aprovou nesta última quarta-feira, 17 de outubro, que legaliza as centrais sindicais, desde que autorizadas pelo Estado. Volta-se a roda da história para trás, para a década de 1937.
A autorização do Estado, em condições para fazer prevalecer as grandes centrais, estreita abusivamente a pluralidade sindical ao obstruir a autonomia. E tem mais: embora transforme em opcional o desconto em folha de pagamento do imposto sindical, assegura o repasse do mesmo às centrais, tornando-as personalidades jurídicas com representação do trabalhador ou da categoria em juízo. Em outras palavras, a legalização das centrais sindicais, atreladas ao Estado, perpetua o imposto sindical, alimentando inclusive as federações e confederações a elas filiadas.
No nosso entender, sindicalismo autônomo não é prerrogativa do Estado, e sim do trabalhador. Daí a contribuição sindical não ser um imposto. Nos regimes efetivamente democráticos, o sindicato não requer a tutela do Estado, mas o respeito à sua autonomia. Isso tem sido confirmado historicamente: quando o sindicato é apêndice do Estado, é limitado abusivamente pelo mesmod+ e se o sindicato, pelas suas ações, negar esse atrelamento, certamente terá negada sua investidura sindical, quer dizer, não será reconhecido em juízo e os acordos não terão força jurídica.
Em termos práticos, os docentes que não têm seus acordos com o governo federal reconhecidos com força jurídica deverão refletir cuidadosamente como situar o Andes se confirmado esse projeto pelo Senado.
Certamente está em andamento o deslocamento das lutas sindicais do terreno das mobilizações e greves (que estarão sujeitas a enormes restrições e penalidades) para o movediço terreno meramente jurídico, aquele mesmo que, submetido às influências do Executivo, consagrou derrotas recentes dos trabalhadores, como o caso da URP e do desconto dos aposentados e pensionistas, entre outros pontos.
Nesse quadro complexo, uma nuance aparentemente inofensiva pode ser estabelecida como ardil – cansados das greves e motivados pela insegurança jurídica, os trabalhadores poderão, tendencialmente, ser forçados à auto-aplicação das restrições sindicais, desmobilizando-se, esvaziando e restringindo ao máximo as suas assembléias, confiando que as cúpulas sindicais possam assegurar o que ainda não perderam, mesmo sob o preço de renunciarem ao que ainda poderiam reconquistar.
Quando as medidas autoritárias forem estabelecidas, seu impacto psicossocial será aparentemente nulo se já previamente absorvidas como de nosso interesse, como sendo “nossa” a renovação sindical.
No nosso caso, somente com o passar do tempo histórico, motivados por outras crises, os trabalhadores docentes terão uma outra chance de restabelecer seu percurso de lutas, verificando que, após terem transformado um quase-sindicato numa quase-fundação, o ser docente aprofundou-se em crise de identidades com sua precarização profissional. A reconstituição do ser docente dependerá então de gerações, pois não se desconstrói num ato de vontade, um imaginário ideológico que se hospedou como sendo sua consciência. O nosso inteiramente outro não reside apenas fora, pois se efetiva quando se torna a “nossa” consciência e torna-se prática quando estamos mais do que convencidos dela, quando odiamos o que ainda resta de nós mesmos.
Esse ardil pode ser complementado com modalidades sindicais autocráticas, voltadas aos representantes e não aos associados reunidos diretamente, ou como vocações autoritárias personalistas ou populistas – que celebrarão contratos –, mas sem efetiva comunhão de classe.
SUGESTÕES – Posto assim, numa hipótese possível (e essa condição requer o exercício da refutabilidade), é que está em jogo muito mais do que a mudança do regimento de nossa seção sindical, embora essa seja necessária.
Sob um exame em perspectiva, uma reforma aparentemente restrita a ela mesma, mas na direção da auto-aplicação das reformas governamentais e patronais, será mais fácil de ser realizada, porque basta-se no mais imediato e tem quase todos os ventos a favor: diminuição da Diretoria e do Conselho de Representantes, fortalecendo esse conselho como representação indireta, e limitando ao máximo a participação direta em assembléia, neutralizando a pluralidade do espaço público e do contraditório, onde deliberações de cúpulas podem ser não confirmadas e a construção da identidade coletiva, não fragmentada, pode ser animada mesmo que em situações de profundo refluxo de suas energias mobilizadoras.
Mas uma reforma regimental pode ser uma proposição muito interessante, é uma outra hipótese se relacional a outros aspectos internos e externos ao próprio sindicado.
Noutra perspectiva, em vez do sindicalismo de conformação, apresentado por plausíveis argumentos em oposição ao sindicalismo da revolução imaginária, é possível um sindicalismo de resistência.
É possível, sim, atualizar o regimento da Apufsc:
1. Fortalecer o Conselho de Representantes como organização de comissões sindicais por local de trabalho (departamentos e centros), onde devem residir as discussões de base para as elaborações das políticas sindicais a partir das necessidades das condições de trabalho.
2. Fortalecer a Assembléia-Geral como momento deliberativo a partir dos debates desenvolvidos nas comissões sindicais por centros (formadas por representantes dos departamentos). Essas comissões poderão ser mobilizadoras nos debates com a participação direta dos docentes, utilizando-se também de todos os instrumentos de comunicação e consulta, como a internet e a votação local. Essas comissões e reuniões visam fortalecer a Assembléia-Geral dos associados.
3. Com o funcionamento colegiado da Diretoria, despersonalizar o presidencialismo, instituindo as coordenações com responsabilidades definidas.
4. Instituir a representação sindical no Conselho Universitário. Muitas matérias deliberadas por esse órgão são relacionadas às condições de trabalho e precisam ser examinadas também sob essa ótica, em respeito ao ser docente, que deverá ser consultado sindicalmente sobre as matérias desse âmbito.
5. Instituir no âmbito local da UFSC o Acordo Coletivo, discutido anualmente com a administração central da universidade. Certamente a pauta de preocupações dos docentes quanto às condições locais de trabalho (salas para professores, horas de trabalho, acúmulo de tarefas, condições de ergonomia etc.) deve ser ampla, corrigindo as assimetrias intra e interdepartamentais. Isso possibilitará melhor motivação e interesse sindical, além de melhorar a articulação com a pauta nacional, não fragmentando os docentes no atual neocorporativismo.
6. Os serviços médicos e outros podem ser repassados a uma Cooperativa de Usuários, inicialmente constituída com o apoio da Apufsc, podendo unificar aí professores e técnicos administrativos, fortalecendo argumentos de negociação com as prestadoras, reservando ao sindicato as atividades próprias da investidura sindical.
7. Nacionalmente, nem mais nem menos importante, lutar pelo acordo coletivo com o governo federal. Considera-se aí que se não somos um padrão único de qualidade, mas unitário, isso requer um forte sindicato nacional, sem imposto sindical, sem federações ou confederações – nos moldes da renovação sindical que representaram os esforços de constituição do Andes, dotado de investidura sindical, mas mantendo sua autonomia política.
Essas sugestões, no plano funcional, são mais próximas ao sindicalismo de resistência do que do de conformação, e próprias da nossa condição profissional.
Neste momento, ser docente (como vocação, como ensino, como pesquisa, como gênero, como política, como espiritualidade, como compromisso, como trabalho e como tempo livre) é a condição que se impõe à centralidade do trabalho. A radical reconversão conservadora nega tal centralidade, pois é colonizadora de outros ideais que não o da pluralidade e o da liberdade.
Nesta situação, teoricamente falando, é razoável examinar a hipótese de que, frente às políticas de dissolução dos sujeitos, a culpabilização não é o melhor debate.
Fica então o convite: resistir é preciso, culpar não é preciso. Nosso fa(r)do é outro.