Por uma Apufsc democrática[1]

“À medida que as pessoas se retraem do aborrecimento de reuniões constantes sobre tudo e sobre nada, a pequena minoria dos obsessivamente engajados pode tomar o controle das instituições participativas, falando pelos colegas ausentes, distraídos e taciturnos.” (R. M. Unger).

Neste histórico momento, compartilho um sonho, o sonho de um sindicato democrático, não isolado e com medo da maior parte dos colegas, mas fiel aos anseios dos mesmos e permitindo a expressão de todos seus milhares de sócios.

Sonho com um sindicato onde democracia não seja um simulacro, feita sem a participação e consulta aos professores. Tanto na política brasileira, quanto na sindical, vivemos uma mise en scéne, um circo onde nos permitem participar do que é pouco relevante. Os únicos plebiscitos da história nacional foram sobre porte de armas, sobre monarquia ou república, parlamentarismo ou presidencialismo. Também na história das infinitas assembléias da Apufsc nunca deliberamos sobre as fundações universitárias ou sobre nossa participação nas comissões eleitorais para selecionar reitor, porém fomos consultados “n” vezes sobre o reajuste da Unimed.

Sonho com um sindicato onde os conflitos sejam vivenciados com integridade e nobreza, de forma compatível com nossa condição de educadores, sem descaradas manipulações e maldosas mentiras. 

Sonho com um sindicato onde a participação no mesmo não nos obrigue a uma dedicação integral a causa político-sindical, mas seja adequada ao nosso compromisso com a excelência acadêmica e com a democratização do saber. A universidade é uma instituição onde a aristocrática meritocracia, donde brota a liderança intelectual, convive tensionadamente com uma qualificada democracia.

Sonho com um sindicato que não seja plataforma para os projetos de meia dúzia, de uma pretensa vanguarda que, sem retaguarda, produz uma política mal feita e pouco política, porque, sendo uma mera política de aparelho onde poucos são os comensais, é incompatível com nossa especificidade profissional. Sonho com um sindicato onde a inevitável ação política brota com vigor do chão das nossas graves questões trabalhistas e com elas está comprometido.

Sonho com um sindicato onde cada filiado seja tratado com dignidade, humanidade, independente da sua convicção ideológica, seu credo, raça e titulação. 

Este elã vital com certeza também o é da imensa maioria dos colegas da UFSC, os quais, organizados no movimento “Por uma nova Apufsc” aos poucos o materializam.

Mas, é um parto com dores. A Apufsc, presentemente, vive uma crise política externada através de aparentes picuinhas, como as pseudodivergências para com a negociação com a Unimed. A alta competitividade e baixa solidariedade reinante acirram conflitos inerentes a todo espaço coletivo, gerando uma inescrupulosa oposição ao processo de mudança sindical. Difamam-me, ao acusar que não respeito decisões da Diretoria: apontem-me quais decisões violei!!! Infelizmente, questiúnculas atravancam a agenda da Apufsc, paralisando-a, desviam-na da sua missão institucional, do enfrentamento das graves desafios conjunturais (Reuni…). São ciladas típicas de profissionais da política – os quais, como já enunciou Espinosa em 1677, “estão mais preocupados em preparar armadilhas aos homens que em dirigi-los pelo melhor” – servindo para desgastar o movimento pela refundação da Apufsc, estabelecendo, pela tergiversação, uma camisa de força que aprisiona o debate. 

Mentiras e joguinhos de poder nos comovem. Mas, não nos apequenemos com estas misérias destinadas ao pó da história. Estamos aqui de passagem. A Apufsc não nos pertence, nem a nenhum grupo político, mas é de todos. Nossa missão é devolvê-la ao conjunto dos colegas, é fazê-los acreditar na mesma, é renovar sua legitimidade. 

Infelizmente, a crise da Apufsc não surgiu agora, mas se arrasta ao longo dos anos. Seu sintoma mais importante é o esvaziamento do sindicato: a média dos participantes das assembléias fora do período de greve dos 15 anos passados é menor que o número de diretores. Mesmo as assembléias de greve não costumam reunir 5% dos associados. Nossa crise também se evidencia pela inexistência, há duas décadas, do Conselho de Representantes2, segunda instância deliberativa do sindicato, órgão sem o qual regimentalmente a Apufsc não poderia funcionar. A presente recomposição do CR é um passo fundamental para regularizarmos a vida interna da Apufsc.

A crise maior do próprio sindicalismo e da universidade brasileira complexificam e agravam ainda mais a crise do sindicalismo universitário, pois sobre ele convergem. Entre as muitas causas desta crise, realço a mentalidade de que há um piano a ser carregado pelos dispostos ao sacrifício. Trata-se da perversa divisão de trabalho onde os pesquisadores pesquisam, e “delegam” aos militantes a participação no sindicato, como se eles de fato cuidassem minimamente das nossas questões sindicais. 

Há que romper com este modelo de sindicato que exige profissionalismo, dedicação exclusiva, participar de longas e constantes assembléias. Fazer sindicalismo não pode ser um peso. É bom repetir: alguns podemos estar, momentaneamente, sindicalistas, mas somos todos professores. A Apufsc surgiu de fortes processos coletivos, da luta comum dos docentes da UFSC. O profissionalismo sindical, o burocratismo e o vanguardismo negam e desvirtuam nossa origem histórica.

Professores: seríamos irresponsáveis se não buscássemos mudar. Diante deste quadro de crise, há fatores ao nosso alcance que podemos enfrentar e responder. A presente reconstituição do Conselho de Representantes é um momento histórico, é expressão da vontade coletiva da multidão, dum autêntico movimento de professores. 

Colegas: não tenhamos estreiteza de espírito. Façamos do conflito um diálogo educativo com o conjunto dos associados: afinal, estar numa universidade deve fazer diferença. A atual crise é uma oportunidade para rompermos com um modelo de sindicalismo esgotado, para enfrentar o autismo dominante, pois está a reconectar o sindicato com a maioria dos professores, os quais acompanham seus desdobramentos e até se mobilizaram para recompor este CR, após mais de duas décadas de inoperância. 

É missão deste CR garantir e ampliar a democracia da Apufsc, retirá-la da intestina e paralisante disputa de bastidores. Para isto, é sua urgente tarefa produzir uma reforma regimental, adequando minimamente o Regimento Geral da Apufsc à situação contemporânea dos professores-pesquisadores, possibilitando canais adequados pelos quais a maioria possa se expressar e participar das grandes decisões coletivas.

A agenda de mudanças na Apufsc não se esgota com o fim do assembleísmo na deliberação sobre greves, garantindo que todos terão oportunidade de se manifestar sobre decisão de crucial importância. Não podemos continuar limitados ao modelo atual democracia. É uma perigosa ficção democrática que uma comunidade de mais de 2 mil sócios funcione em constantes assembléias. Ainda mais quando estes sócios são professores-pesquisadores submetidos a uma rotina estressante, competitiva e não sincrônica. Obviamente, assembléias continuam necessárias, porém precedidas de grandes debates, sendo preservadas para ocasiões especiais.

Hoje as tecnologias de comunicação potencializam a inteligência coletiva e minimizam o stress democrático do assembleísmo presencial. Porém, sem bom senso e sem um forte conselho de representantes, naufragaremos na babel do assembleísmo digital.

Como a arte de representar é muito difícil, cabe uma permanente relegitimação, uma perpétua interatividade e entrelaçamento com a base donde emergiu o representante. Infelizmente, costuma ocorrer que o representante viola a confiança dada e se autonomiza. Locke no séc. XVII já alertou sobre isto, defendendo que neste caso o representante perde o direito “e o poder deve retornar às mãos dos que o concederam”. Felizmente, as atuais tecnologias comunicacionais pulverizam este poder da vanguarda e corrigem históricos problemas, permitindo ter organizações mais democráticas que minimizam a necessidade da representação. Democracia é, também, consulta permanente aos representados, transparência, reuniões abertas de diretoria, transmitidas on line para todos, com atas claras e amplamente publicizadas. Assim, evita-se a pilhagem do bem comum e o desmonte da coletividade. 

Uma das virtudes fundamentais de um novo sindicalismo é o respeito à nossa pluralidade de posições políticas intrínseca à vida universitária, é não se aprisionar em uma única postura ideológica, garantindo o livre curso do debate político democrático. Como em toda relação de trabalho sempre haverão lutas a serem travadas, um sindicato de fato vinculado as suas bases estará apto para embates cada vez maiores.

Na diversidade, cabe construir uma unidade no essencial: uma visão comum sobre a universidade, sobre nossa condição profissional. Deste quadro emerge uma nova percepção sobre o papel de um sindicato de professores universitários, uma nova cultura sindical compatível com nossa condição de pesquisadores, a qual faz a crítica ao sindicalismo corporativado, burocratizado e militantista, ao populismo dominante. 

Entretanto, antagonismos são inevitáveis, e a ciência política nos mostra que há duas formas de resolvê-los: tratar o outro como inimigo, e buscar destruí-lo (a política como guerra: quem não concorda comigo está contra mim)d+ ou tratar o outro como diferente e adversário e buscar o diálogo (a política democrática plural). Se a primeira perspectiva na verdade nega a política, a última é a forma especificamente humana de responder aos conflitos (polemos). Sua raiz também reside na gestão da polis (cidade/campus), na qual se funda – e afunda – a cidadania. Somos seres dotados da palavra. Portanto, uma vez que estamos unidos num destino comum (a UFSC), podemos e devemos superar a violência pré-política através da prática democrática.

Existem duas tradições no pensamento político: uma nasce com Aristóteles e sustenta o vínculo entre ética e políticad+ outra, com Maquiavel, afirma um divórcio. Porém não cabe reduzir a política à ética e ao estabelecimento de consensos. Não tenhamos ilusões: o diálogo racional nem sempre eliminará o confronto, pois diferenças e dissensos são constitutivos da sociedade pluralista. Se uma democracia sem conflitos é inalcançável, o desafio é constituir formas de poder/hegemonia compatíveis com os valores democráticos (C. Mouffe).

Esta posse do CR é mais um passo da refundação da Apufsc que está em curso, a qual já tem um alcance muito maior: somos uma etapa dum processo de renovação da nossa enfraquecida instituição universitária. A democratização do sindicato pode e deve avançar para uma discussão mais ampla sobre a universidade, especialmente sobre os alcances e limites da democracia universitária. 

Sejam todos bem vindos. Parabéns por se disporem a difícil tarefa de “representar” o conjunto dos professores. Bom trabalho.


[1] Saudação lida em 16.10.07 na posse do Conselho de Representantes da Apufsc. Na ocasião alertei que uma discussão sobre a reinvenção democrática do sindicalismo encontra-se no último livro de Boaventura Santos: “A gramática do tempo”.

[2] A última reunião do CR ocorreu em 9.04.86, com a presença de 8 professores.