Reuni versus alunos de pós-graduação

Meu objetivo aqui é fazer algumas observações referentes ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – Reuni. Mais precisamente, não ao Reuni propriamente dito, mas sim à maneira pela qual algumas instituições pretendem cumprir os requisitos para a adesão ao projeto.

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Não é meu objetivo aqui discutir os méritos e deméritos gerais do projeto, tarefa que cabe –sobretudo – à comunidade acadêmica fazer. Entretanto, posso contribuir para o debate em um aspecto do programa que vem sendo discutido em alguns departamentos, a saber, a maneira pela qual os mesmos pretendem atender à elevada demanda que um aumento de vagas nas proporções sugeridas pelo Reuni irá requerer.

Alguns membros da comunidade acadêmica sugerem que o aumento da oferta de vagas pode ser realizado se parte da carga horária de ensino – predominantemente, aquela referente a cursos básicos – passe a ser responsabilidade dos alunos de pós-graduação. Os argumentos em favor de tal proposta são variados, mas um deles é recorrente e tem sido utilizado com certa leviandaded+ argumenta-se que tal sistema já é utilizado há muito tempo nos EUA e seu comprovado sucesso é atestado pela qualidade da pós-graduação das universidades norte-americanas. É especificamente esse ponto que quero discutir, visto que considero tal argumento falacioso. Enfatizo que não estou tentando fazer uma comparação entre os modelos universitários norte-americano e brasileiro com intuito de identificar qual deles seria “melhor”. O que me proponho é explicar por que um modelo onde os alunos executam tarefas docentes funciona nos EUA. Assim, espero esclarecer que é inviável simplesmente instituir uma série de cursos sob responsabilidade de mestrandos e/ou doutorandos, ignorando-se todo o contexto que permite que tal idéia funcione nas universidades norte-americanas.

Antes de discutir sobre esse ponto, eu gostaria de esclarecer porque me sinto qualificado para tratar dessa questão, ao mesmo tempo que isso esclarece a fonte de várias afirmações feitas subsequentemente. Basicamente há duas razões.

Atualmente sou estudante de doutorado no departamento de Matemática da State Univervisty of New York at Stony Brook (ou simplesmente universidade de Stony Brook) – onde, como normalmente acontece nas universidades norte-americanas, tenho de cumprir certa carga horária de tarefas de ensino. E antes de ingressar no doutorado, fui professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por três semestres, lecionando sempre os cursos básicos que se pretende passar para a responsabilidade dos pós-graduandos. Portanto, tenho condições para bem julgar e comparar a tarefa de ensino desenvolvida pelos pós-graduandos nas universidades nos EUA com as pretendidas obrigações que teriam os pós-graduandos no Brasil.

Outrossim, devo mencionar que a universidade de Stony Brook apresenta altos níveis de excelência. Isso porque alguém poderia tentar contra-argumentar que os fatos que menciono abaixo não se aplicariam a universidade norte-americanas de qualidade e portanto não poderiam ser levados em conta na argumentação.

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Feitas todas essas observações, podemos comparar as atividades de ensino que cabem a um aluno de pós-graduação nos EUA com o que se sugere que seja realizado pelos alunos de mestrado e doutorado no Brasil.

1. Posição

Antes de mais nada é preciso esclarecer porque doutorandos executam tarefas docentes nos EUA. Na maioria dos casos os alunos de pós-graduação recebem suporte financeiro por ocuparem uma posição de Teaching Assistant (TA) (a tradução seria professor assistente ou auxiliar, mas não vou fazê-la aqui, pois tal função difere diametralmente daquelas que no Brasil recebem o mesmo nome). Formalmente, o aluno é um funcionário da universidade, ficando obrigado a realizar algum tipo de atividade de ensino. 

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2. Tipo de atividade

Primeiramente, deve ser entendido que a atividade de ensino com as quais os alunos de pós-graduação estão comprometidos em universidades norte-americanas não são, em sua maioria, aulas expositivas. As disciplinas são divididas em Lecture e Recitation. A Lecture é a aula propriamente dita e fica a cargo de um professor do departamento. Os alunos de pós-graduação ficam responsáveis pela Recitation, a qual assemelha-se muito a uma monitoria e tem duração de 1 hora. A Recitation é um espaço que os alunos de graduação têm para tirar dúvidas e discutir problemas. Em geral, cada TA é responsável por duas Recitations, ou seja, dois encontros semanais de uma hora cada.

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Além das Recitations, o TA deve cumprir certo número de horas semanais de atendimento extra-classe. Onde estudo, são três horas semanais e dificilmente tem-se mais do que isso em outros departamentos.

Em alguns casos, o TA também é responsável por corrigir exercícios que são indicados para serem entregues e valem pequeno percentual da nota final.

Finalmente, os TAs devem participar da correção das provas. Isso obviamente depende do número e tipo de provas aplicadas durante o semestre letivo. De maneira geral, a correção consome um turno de trabalho e o número de provas varia entre duas e três por semestre.

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A situação difere drasticamente da brasileira. Antes de mais nada, o sistema brasileiro é todo calcado em aulas expositivas e/ou práticas, não havendo qualquer divisão semelhante àquela entre Lecture e Recitation que existe nas universidades norte-americanas. As disciplinas básicas nas universidades brasileiras são em geral de quatro ou seis créditos semanais. Portanto, um aluno de pós-graduação que fosse obrigado a ministrar alguma dessas disciplinas teria algo em torno de cinco horas semanais somente em sala de aula, sem contar todas as outras tarefas relacionadas com a atividade de ensino. Tais tarefas extras não podem ser consideradas como algo que não demande esforço e tempo por parte de quem as executa. 

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Isso posto, parece provável que se os mestrandos e doutorandos forem obrigados a lecionar disciplinas de graduação, encontrar-se-ão então com o seguinte dilema: ou (i) manter o curso que ensinam em um patamar aceitável de qualidade, com conseqüente e significativa redução do tempo dedicado à atividade de pós-graduação como um todo (pesquisa, elaboração da tese, estudo para as disciplinas) – o que acarretaria decréscimo na qualidade do trabalho desse aluno (e a longo prazo, decréscimo na qualidade da instituição) ou (ii) dedicar-se menos à atividade docente de modo que o trabalho de pós-graduação não seja afetado, acarretando uma queda de qualidade do ensino. Portanto, seja qual for a opção escolhida pelos futuros “alunos-professores”, o prejuízo para as universidades federais parece difícil de ser evitado caso a medida em questão seja de fato implementada.

3. Tempo de duração da pós-graduação realizada com suporte financeiro

Na maioria dos programas de pós-graduação dos EUA não existe um prazo pré-fixado para a duração do doutorado e (por extensão) do contrato de TA. Geralmente, a permanência do aluno e continuidade do suporte financeiro devem ser renovados anualmente e ficam condicionados ao desempenho do pós-graduandod+ entendendo-se aqui desempenho tanto em relação às atividades de aluno como às de TA. Isso possibilita maior maleabilidade, de modo que não há um prazo pré-determinado para o encerramento suporte financeiro fornecido ao pós-graduando.

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Comparando-se então o sistema de financiamento e continuidade dos programas de pós-graduação nos EUA e no Brasil, fica patente que é irrealista o argumento de que os pós-graduandos brasileiros poderiam arcar com tarefas docentes simplesmente porque os (alunos) norte-americanos assim o fazem, e isso sem prejuízo para o trabalho de pesquisa.

Resumindo-se, pode-se dizer que a execução de tarefas docentes por alunos de pós-graduação nos EUA repousa fortemente no fato de que o doutorado pode ser estendido para mais de quatro anos sem perda de suporte financeiro, política que é completamente inexistente no Brasil.

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4. Valores das bolsas

Muitas universidades norte-americanas não remuneram bem seus TAs. No entanto, comparando-se os valores com as bolsas no Brasil, e contextualizando-se o custo de vida dos respectivos países, fica claro, em minha opinião, que os pós-graduandos brasileiros são muito mal remunerados.

É importante mencionar que existem benefícios que os TAs recebem que são uma forma de pagamento indireta, o principal e mais importante deles sendo o plano de saúde. Como se sabe, os planos de saúde são muito caros nos EUA (mesmo para padrões americanos). O fato das universidades proporcionarem um plano de saúde para os pós-graduandos também deve ser levando em conta quando se computa a diferença entre o que é pago a mestrandos e doutorandos no Brasil e nos EUA.

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E se é verdade que sobrecarregar professores e pesquisadores implica queda de qualidade no ensino e pesquisa, exatamente a mesma conclusão aplica-se quando é pensado em se sobrecarregar os mestrandos e doutorandos. Negá-lo seria equivalente a dizer que os pós-graduandos não executam papel relevante no desenvolvimento da pesquisa realizada no Brasil. Alguém que aceite essa tese sobre a importância dos pós-graduandos na pesquisa é fortemente recomendado a olhar mais atentamente o processo de pesquisa desenvolvido nas universidades.

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Espero que as idéias aqui expostas sejam úteis para o debate em torno do Reuni, o qual é apenas uma peça dentro do debate acerca do modelo de universidade que queremos para o Brasil. A sociedade brasileira tem uma série de desafios pela frente e as universidades têm um papel importante na elaboração de um projeto para a nação. Mas isso deve ser feito de forma democrática, dando-se voz para todos os agentes que contribuem para o crescimento da universidade brasileira. 


A íntegra deste artigo pode ser acessada em ciencia-e-iluminismo.blogspot.com/2007/09/o-reuni-versus-alunos-de-ps-graduao.html