Conta a Hagiografia que Tomás de Kempis morreu com fama de santo. Compreensível, tratando-se do autor da “Imitação de Cristo”, best seller religioso cuja leitura santificou inúmeros cristãos. Assim, passado o tempo canônico iniciou o processo que, se bem sucedido, enriqueceria o panteon católico com mais um santo. Mas já desde o início interveio o famigerado Advogado do Diabo pondo em xeque a santidade do candidato. Descartadas, porém, as sugestões, aliás, tentações diabólicas, o processo foi aberto com a costumeira solenidade. Procedeu-se, assim, à exumação do corpo. Caso ele estivesse intacto, como se diz que acontecera com alguns santos, isso seria já creditado como o primeiro milagre. No entanto, ao abrir o caixão, foram econtradas evidências de que o defunto fora enterrado antes de sê-lo… Não tendo condições de constatar como tinha sido a “segunda morte” do canonizando, o Advogado do Diabo decidiu pelo arquivamento do processo, decisão acatada até pelo Papa.
Mas já não se fazem advogados como antes. A julgar pela rapidez e abundância de canonizações nos tempos modernos, a lendária figura do Advogado do Diabo, ou é dispensada ou emudece ante a ensurdecedora voz do Summus Pontifex. Com efeito, sem o silenciamento desse desmancha-prazeres não teria sido possível a ciranda de canonizações realizadas pelos dois últimos Papas. É verdade que dentre os galardonados há exímios exemplos de virtude, incluídos entre eles os Santos brasileiros. Mas olhando para alguns dos Santos que “chegaram lá” sob o Papa polonês, cabe perguntar “son todos los que están?”. Um dos mais questionados é o espanhol José Maria Escrivá. Não faltaram os malvados que associaram a canonização do fundador do “Opus Dei” ao poderoso lobby montado pela não menos poderosa Instituição.
Outra canonização polêmica foi a do mexicano Juan Diego, suposto vidente das aparições de Guadalupe. O fato remonta às primeiras décadas da colonização, início do século XVI. O papel que o mito guadalupano desempenhou e continua desempenhando na evangelização do povo mexicano é inegável. A historicidade, e portanto, a própria existência de Juan Diego, que é questionada. Assim reconheceu publicamente Guillermo Schulemburg, anterior Abade da Basílica. Pagou caro a sua honestidade intelectual: perdeu o cargo, uma verdadeira mina de ouro, para o Cardeal Norberto Rivera, Primaz do México.
Quando da canonização de Juan Diego, de Escrivá e de um santo polonês, os mexicanos comentavam a boca pequena: “ao seu patrício o Papa dispensou os milagres, ao Escrivá a santidade, e ao Juan Diego dispensou até a existência”. Se o Todo Poderoso pode criar mundos ex nihilo, seu Vice na terra pode criar santos, também do nada.
“No son todos …, ni están todos los que son”. E aquí ousamos perguntar à máxima autoridade eclesiástica: por que aqueles SIM e outros NÃO? O bispo Casaldáliga cultuava como santos d. Romero, assassinado em El Salvador pelos militares e o padre Bosco, executado durante a ditadura pensando que fosse o próprio bispo. Mas o culto foi proibido porque a Cúpula eclesiástica “não tinha se pronunciado”. Por que nesses casos a Igreja demora tanto a “se pronunciar”, ou jamais se pronuncia? Será porque, ao reconhecer o heroismo das vítimas, a Igreja receia ofender os algozes, ferrenhos anti-comunistas?
Se dependesse de bispos como Pedro Casaldáliga e dos que comungamos de suas idéias e ideais, seriam santos também os bispos, padres e leigos assassinados durante as ditaduras militares que assolaram a América Latina em época recente. Para nós é santa também a freira Dorothy Stang, assassinada recentemente no Brasil por defender os colonos pobres. Santa é igualmente, independente de sua filiação religiosa, a jornalista russa Anna Politkovskaia, morta por denunciar os crimes da Rússia contra a Chechenia. Declaramos ainda santa Digna Ochoa, advogada dos índios mexicanos, assassinada quem sabe por quem… A novíssima santa, também mexicana, é a índia Ernestina Ascencio, morta faz apenas três meses em decorrência do estupro e torturas de todo tipo desferidas pelos militares. As autoridades, civil e militar, ao invés de punir os criminosos, os acobertaram – tal como fez o Cardeal Rivera com os padres pedófilos.
E que dizer de Ernesto Che Guevara? Ele já foi canonizado, de fato, pelos povos do mundo inteiro. Nunca, como no caso dele, foi tão apropriado dizer: Vox populi vox Dei. Ele, diferentemente de muitos dos santos e santas que povoam os altares das igrejas católicas, deu a vida pelos irmãos. Pode haver algo mais próximo do sacrifício de Jesus Cristo? (Jo 15, 13).