“Pergunte a cada ideia: Serves a Quem?” (Berholt Brecht)
Adquiri, por mera curiosidade, em minha última viagem ao Rio de Janeiro, o livro Chega de autocrítica, Uma defesa do socialismo real de Marcelo Henrique de Barros Madeu (1). É um livro dialético, que usa argumentação antiquada, há muito superada, fraca, contendo um enorme potencial de desinformação para leitores desavisados. Então, num país como o Brasil, onde uma percentagem relativamente pequena de pessoas tem o hábito de ler, tornando a maioria da população incapaz de cotejar uma informação contra outra, e onde até o Presidente da República assina um decreto volumoso sem ao menos lê-lo, não dá para se calar porque o preço do silêncio é a vitória da burrice e do atraso.
O livro contém afirmações, como algumas que analisarei abaixo, que para fazê-las é preciso ser ou sectário cego, ou desinformado, ou mal intencionado, ou então, ser um ”lutador pelo comunismo”. Na afirmação de Bertolt Brecht, em A medida punitiva (6), “quem luta pelo comunismo tem de poder lutar e não lutard+ dizer a verdade e não dizer a verdaded+ prestar serviços e negar serviçosd+ manter a palavra e não cumprir a palavrad+ enfrentar o perigo e evitar o perigod+ identificar-se e não identificar-se. Quem luta pelo comunismo tem de todas as virtudes apenas uma: a de lutar pelo comunismo.”
A bibliografia relacionada contém 28 títulos, sendo apenas 5 deles posteriores a 1990. Na era da informação, após a queda do muro de Berlim, ou se quiserem, após a “Glasnot” de Gorbachov, não é mais admissível escrever sobre o que ocorreu na antiga URSS, sem recorrer a pesquisas na Rússia e em outros países da ex-URSS.
O prefácio do livro, da autoria do Doutor em História Antonio Cícero Cassiano e Souza, destaca a profundidade e o alcance popular entre as qualidades do livro. Como não conheço o prefaciador, não sei se o Doutor em História está desatualizado e desinformado ou se quis apenas “valorizar” o livro, dando uma mãozinha à causa em questão. Na verdade apenas confirmou a afirmação de Brecht, acima.
Basicamente Madeu (1) procura refutar afirmações desairosas feitas aos comunistas, ao comunismo, à URSS e seus satélites no decorrer da história. A técnica dialética que usa é mostrar que no resto do mundo também havia isto ou algo pior. Transforma ficções propaladas em verdades e inventa ou repete explicações que só a obcecados ou inocentes podem convencer. Contudo, tem um lado positivo, o de deixar claro sobre o tipo de socialismo que está e estão querendo requentar.
A seguir reproduzo algumas afirmações constantes no livro e faço considerações a respeito.
Referindo-se ao comunismo, pág. 22, diz: “Um regime que garante tantos benefícios ao seu povo, que tem verdadeira obsessão pela honestidade e que não torturava, como veremos, conseguindo essas realizações sem explorar outros povos… Não nos parece pouco”. Em outra página, o autor complementa:”Limitemo-nos ao essencial: Não existia tortura na URSS”.
A prova da honestidade do regime (que tem verdadeira obsessão por essa virtude) tem por base a seguinte pérola de lógica, extraída de um depoimento de um dirigente. Com as premissas, ”embora os comunistas nem sempre praticassem a honestidade que pregavam”, e ”nem sempre quer dizer quase sempre”, conclui que os comunistas primavam pela honestidade. E arremata com o corolário: “como se sabe, nada é perfeito”. Que posso dizer? Beleza! Assim é fácil obter honestos.
Quanto à afirmação de que o regime comunista não torturava, afirmo: Não só torturava como torturava muito. O Politburo, segundo Montefiore(2) especificou oficialmente em 1937 que a tortura deveria ser usada. E isso de fato aconteceu, vejamos:
Em Figes(5), depois da página 680, há até uma foto de um prisioneiro sendo torturado sob as vistas de um grupo numeroso. Na página 793 da mesma referência, são descritas as formas como a Cheka torturava. Em engenhosidade se comparava à inquisição espanhola. Assim descreve as especialidades de cada local:
“Em Kharkov ficou famoso o “truque da luva”… Em Tsaritsyn costumavam serrar os ossos dos prisioneiros… Em Veronezh eles eram encerrados em barricas cravadas de pregos… Em Armavir apertavam-se os crânios com tiras de couro … Em Kiev aquecia-se uma gaiola cheia de ratos presa ao tronco da vítima, para fugir os bichos abriam caminho pelas entranhas do infeliz….”. E tem muito mais. Dos magnatas do poder apenas Béria e Iejov torturaram ou mataram pessoalmente vítimas. Iejov, alto assessor de Stalin, supervisionava seus torturadores, que tinham um jargão próprio para seu trabalho, “luta francesa”. Muitos prisioneiros eram tão espancados que seus olhos literalmente saltavam para fora da cabeça. Costumavam ser espancados até a morte, cuja causa era registrada como ataque cardíaco.
Boa parte dos torturadores era de outras nacionalidades, porque para Lenin os russos pareciam “molengas demais”, incapazes de dar conta das “medidas duras”. Entre os torturadores havia também mulheres.” Vera Grebennikova, uma delas, em Odessa, em apenas dois meses teria matado 700 pessoas”.” Em Arkhangelsk, Rebecca Platinina deu cabo da vida de mais de cem, entre as quais toda a família de seu marido, a quem crucificou, numa vingança abjeta”. Os agentes que cometiam estas brutalidades terminavam seus dias mergulhados na insanidade. Segundo Gippius, a poeta de Petrogrado, durante o terror vermelho “não havia, literalmente, uma única família em que alguém não tivesse sido preso, levado ou então desaparecido sem deixar rastro”.
Em Montefiore(2), consta: “Stalin e seus magnatas riam amiúde da capacidade do NKVD de fazer as pessoas confessar. Stalin contou esta piada a alguém que fora torturado:”Eles prenderam um menino e o acusaram de ter escrito Eugênio Oneguin. O menino tentou negar […]. Alguns dias depois, o interrogador do NKVD encontrou os pais do menino: “Parabens!”, disse ele. Seu filho escreveu Eugenio Oneguin”.
Na página 31, Mateu(1) diz: ”Os êxitos do sistema socialista ultrapassam de longe os do capitalismo. O exemplo mais expressivo é o da RDA”.
O difícil era ver isso. Os cidadãos da Alemanha Oriental (RDA), não notaram que estavam no paraíso, e tentavam atravessar a fronteira, passando para a Alemanha Ocidental. Cercas e campos minados que separavam as Alemanhas eram para eles desprezíveis. A maioria das tentativas terminava em morte ou prisão….
Na página 37, Madeu(1) diz: “A principal acusação contra o socialismo seria os “milhões” de mortos e prisioneiros da época de Stalin. Sem sermos stalinistas, nos é difícil acreditar nisso, não só por falta de fundamento como por uma questão de bom senso”.O autor chama em apoio às suas crenças o fato de que o povo russo, quando soube da morte de Stalin, ficou consternado e chorou. E, segundo o autor, “este mesmo povo, como a própria imprensa americana observou, recebeu com ceticismo e incredulidade o relatório de Khruschiov sobre os crimes de Stalin.”
Leiam, por favor Montefiore (2) e saberão o que a documentação existente e as testemunhas oculares falaram a respeito dos mortos de Stalin. Segundo este autor, pág. 57, “Stalin compreendeu a conveniência da morte como o instrumento mais simples e eficaz. A morte resolve todos os problemas”>izia. E ”nenhum homem, nenhum problema, era o modo de agir bolchevique”.
Após a morte de Stalin, Khruchiov, sucessor de Stalin, admitiu estar mergulhado “até os cotovelos” no sangue de suas vitimas e que ”isso oprime minha alma”. Entre 2 e 9 de julho, V. Serov, membro da polícia secreta, queimou, por ordem de Khruchiov, 261 páginas dos papéis incriminadores dele. Khruchiov, como líder de Moscou, ordenou efetivamente o fuzilamento de 55.741 funcionários, mais do que preenchendo a cota original do Politburo, de 50 mil. E este número é fichinha perante outros.
Na página 40, Madeu(1) diz: “A acusação de “milhões de mortos de fome”durante a coletivização teve seu mais cabal desmentido nas eleições realizadas durante e depois de Gorbatchov. Os resultados mais favoráveis aos comunistas vieram justamente do campo.”
Do início, daquilo que Madeu(1) chama de coletivização(que não atingiu apenas o campo), até Gorbachov, passaram cerca de 70 anos (quase 3 gerações). É muito tempo. Quem hoje, por exemplo, se lembra da ditadura Vargas no Brasil?… Também, números favoráveis em eleições não provam nem desmentem fatos históricos, documentados, e nem os justificam.
Quanto ao número de mortos na URSS, Figes(5), pág. 949, assim se refere: “Considerando somente as baixas da guerra civil, do terror, da fome e das enfermidades, chega-se a algo em torno de dez milhões de vítimas”. Assim esta afirmação de Madeu é um ultraje aos mortos e aos que sobreviveram a uma horrenda fome, havendo até a prática de antropofagia.
Na página 45 Madeu escreve : “31/8/18….Duas balas atingiram Lenin e nunca foram removidas, o que foi uma das razões de sua morte prematura.” E atribui isto ao serviço secreto britânico.
Observo que, segundo Figes(5), Lenin quase morreu devido à bala que o acertou no pescoço em agosto de 1918, mas a causa de sua morte, em 1924, nada teve a ver com este atentado. Lenin morreu devido a AVCs cerebrais (derrames). A jovem judia, Fanny Kaplan,autora dos tiros contra Lenin, pertencia a uma célula terrorista e não ao SR( Partido Socialista Revolucionário). No entanto ela foi julgada como membro do SR e assim fuzilada.
Na página 57, Madeu(1) diz: ”É ao socialismo que os trabalhadores dos países capitalistas desenvolvidos devem seu alto nível de vida e direitos – os quais agora estão arriscados a perder.”
O autor deve estar confundindo socialismo com social democracia. Não vejo como o socialismo possa estar garantindo o alto nível de vida dos trabalhadores de países capitalistas. Deve ser a mesma lógica que Havana usa para culpar os Estados Unidos pelas mortes dos presos políticos do regime castrista, como aconteceu com Orlando Zapata. O povo diria: “É hilário”. Há pouco tempo, pela não edição de um livro pela editora da UFSC, apareceram artigos e artigos no Boletim da APUFSC. Onde estão agora os protestos pela falta de liberdade de expressão em Cuba? Claro, para eles, para implantar e manter o seu regime, a vida de mais um não faz a mínima diferença…. . Agora, como novo presidente de Estudos Latino-Americanos, pelo que o cumprimento, o Professor Waldir Rampinelli tem a ocasião e autoridade de manifestar seu repúdio às ações de Havana e seus lacaios na área dos direitos humanos.
Nas páginas 100 e 102 do livro, Madeu entra na nostalgia, afirmando:”A existência da URSS e do campo socialista era uma garantia de paz. É por isso que defendemos a sua reconstrução por mais utópico que isto possa parecer, e mesmo que a unanimidade dos habitantes das ex-repúblicas se oponha…Independência só quando a ameaça norte-americana deixar de existir”.”…Todos estes conflitos mostram o que o mundo perdeu com a queda do bloco socialista e do muro de Berlim. “Muro da vergonha”? Não, muro da paz. Por nós, ele não só estaria de pé como seria duas vezes mais alto”.
Nada tenho a comentar. Como o autor do livro afirma, o socialismo é imposto, independente do que os cidadãos pensem ou queiram. É o mesmo do mesmo.
Na conclusão do livro Madeu(1) cai na real. “Se era tão bom, por que caiu?” E continua: ”Diremos apenas que isso é o mesmo que perguntar por que a democracia alemã caiu diante do nazismo em 1933- e com menos resistência que o socialismo”.
Meu caro Madeu, não precisa escrever um livro para mostrar porque o regime da URSS caiu. Em uma linha dá para explicar.O regime caiu porque perdeu sua dinâmica, sobrando apenas sua fachada, e fachada não sustenta prédio. Logo após a queda do Comunismo eu vi, com meus próprios olhos, em Moscou e São Petesburgo, velhinhas vender frutas na rua e pedintes estendendo a mão para receber uma esmola. É, vi que as velhinhas não foram contempladas com os cartões dados aos dirigentes, com direito de comprar em lugares exclusivos e com mil vantagens sobre o cidadão comum.
Quanto à comparação com o nazismo, é uma injustiça. O nazismo, como o autor afirma, assumiu o poder via voto. Lenin assumiu o poder de que forma? Ele ficou conhecido do povo russo apenas em 1918, quando foi baleado, ocasião em que os seus asseclas o compararam a Jesus Cristo (Figes (5)). Uma comparação justa, seria o estabelecimento de um paralelo entre a subida de Hitler e a de Chavez.
Quero encerrar este meu artigo de opinião, dizendo que regimes tanto socialistas puros como capitalistas puros (Klein (4)), só se sustentam pela força e são unipartidários. Magnoli (7) assim o reafirma:”Contudo, por cima das divergências, todos enxergaram no termo socialismo uma justificativa para a imposição de regimes unipartidários. E, como cada um precisava conferir legitimidade a seu poder pessoal, os socialismos africanos ganharam rótulos nacionais diversos: o ” consciencismo” de Gana, a “ujamaa” da Tanzânia, o “humanismo”da Zambia”. Aqui, perto de nós, a lista cresce com o socialismo “bolivariano” de Chavez.
O caminho, a meu ver, é o meio termo. Não há hoje países que pratiquem o capitalismo puro, nos termos de Friedman. Os países que praticam o socialismo só o conseguem na força. O Brasil, por enquanto, está democrático. Mas fiquei intrigado, recentemente, com uma observação em uma revista, a respeito do plano de governo da candidata Dilma Rouseff. Diz que o plano comporta duas dimensões, a Empresarial e a Democrática. Dá para inferir uma alternativa não democrática?
Também o Brasil não deixa de inspirar preocupações quando observamos o comportamento das principais autoridades. Enquanto, em Cuba, a viúva de Zapata chora sua morte ao lado do túmulo, nosso Presidente está tirando fotos, sorridente, ao lado de Fidel Castro. Os ministros do governo fazem “aquele” Plano Nacional de Direitos Humanos, e o Presidente, sem ler, o assina. A doutrinação política rola solta nas escolas do país (agora com campo cativo nas disciplinas de sociologia e filosofia), e ninguém do MEC se acha responsável por isso. A leniência, com ou sem consciência, é má companheira.
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NOTAS
1-Madeu,M.H. de B. Chega de autocrítica, Uma defesa do socialismo real. São Paulo: INVERTA,2006
2- Montefiore, S.S. Stalin, A corte do czar vermelho. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
3- Desai,M. A vingança de Marx: a ressurgência do capitalismo e a morte do socialismo estatal. São Paulo: Codex, 2003.
4-Klein, N. A doutrina do Choque, A ascensão do capitalismo de desastre. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2008.
5-Figes,O. A Tragédia de um povo, A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro: Record,1999.
6-Waak,W. Camaradas, Nos arquivos de Moscou-A história secreta da revolução brasileira de 1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
7-Magnoli,D. Uma gota de Sangue, História do Pensamento Racial. São Paulo: Contexto, 2009.