Sob este título de livro, editado pela Editora Record, 2002, na busca pela história do pensamento econômico, Albert O. Hirschman nos proporciona uma nova visão dos fundamentos ideológicos do capitalismo. Segue um relato comentado.
Os pós-primórdios da era cristã nos mostram um ocidente amplamente “substratado” pelo poder temporal, espiritual e intelectual da Igreja católica, o que certamente deixou marcas profundas em toda sociedade. Seguindo o Mestre, grandes ícones da Igreja Católica como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, deixaram importante legado que permeou os ensinamentos e o pensamento medieval e a pré-história da economia moderna.
Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona (354-430), foi bispo de Hipona no Norte da África e por sua importância é chamado doutor da Igreja. Como base de sua ascese colocou o desprezo pela vida temporal e pelos bens terrenos. O supérfluo dos ricos é a propriedade dos pobres, dizia. Ele já apontava o dedo para os três principais pecados do homem que depois o continuaram a ser durante toda a idade média, quais sejam o desejo pelo dinheiro, o desejo sexual e o desejo de dominar (poder). Por sua vez São Tomas, ou Tomas de Aquino (1225-1274), outro grande expoente da Igreja, acusou a busca pela gloria de ser tanto inútil quanto pecaminosa. No entanto, apesar desta posição forte da Igreja, a luta pela honra e gloria foi exaltada, tornando-se, durante o renascimento, ideologia dominante. Mas, também, a busca pela honra perdeu seu status e fato é que menos de um século depois, o impulso aquisitivo e as atividades relacionadas com ele, assim como o comércio, a atividade bancária e posteriormente a indústria, tornaram-se largamente aclamadas. E isto não foi fruto de uma vitória ideológica.
Do renascimento surgiu a convicção, pragmática, de que as paixões dos homens não podiam mais continuar a ser reprimidas pela filosofia moral e preceitos religiosos. A solução seria aproveitar as paixões, em vez de simplesmente reprimi-las. Transformar os “vícios privados” em “benefícios públicos“. A paixão, como verdadeiro contrapeso de outra paixão, compensa a ela própria. Assim a paixão não deve ser destruída e sim conduzida. É preciso compensar aquelas que são prejudiciais por aquelas que são úteis à sociedade…
Neste contexto a palavra interesse é usada como termo genérico para as paixões que são designadas para a função compensatória. Assim, Hamilton justifica o princípio da reeleição para presidente (supostamente não desejável) como compensatório “a tentativas às visões sórdidas e ao peculato“. Da mesma forma a divisão de poderes é justificada porque “a ambição deve ser produzida para se contrapor à ambição“. Maquiavel já tinha desenvolvido de forma parecida a ideia de interesse como sendo “uma compreensão disciplinada daquilo que é necessário para promover o poder, a influência e a riqueza de alguém“. Buscar os interesses materiais era relativamente inocente se comparado com outras paixões impetuosas e perigosas.
Operacionalmente era preciso separar as paixões que tinham a função de domadoras das que, ao contrário, eram verdadeiramente turbulentas e que requeriam a domesticação. Desejos e outras paixões, tais como a busca agressiva de riquezas, glória e domínio, são superadas pelas que predispõem os homens à Paz, como o Medo da morte, o Desejo das coisas que são necessárias a uma vida confortável e uma Esperança na sua diligência em obtê-las. Assim, no inicio do século 18, a posse da riqueza é afirmada como “aquela paixão que é considerada peculiarmente interessante“. A totalidade do contrato social teria derivado da estratégia compensatória.
Adam Smith, ao discutir o que considerava motivar mais o homem a melhorar sua condição, concluiu que o meio mais comum e óbvio é o aumento da fortuna. Dizia que o desejo de melhorar, geralmente tranquilo e desapaixonado, vem conosco do útero, e nunca nos abandona até irmos para o túmulo. Nos tratados sobre as paixões do século 17, a avareza é considerada a “mais sórdida de todas elas“, enquanto ao enriquecimento é atribuída uma conotação positiva e curativa. Segundo Hume, a avareza, ou o desejo do ganho e acumulação, é uma paixão universal que opera em todas as épocas, em todos os lugares, e sobre todas as pessoas.
Em tal contexto o triunfo do capitalismo, segundo Hirshman, pode ser atribuído a uma certa subavaliação de suas potencialidades. E quem sofreu a maior influência foi a ordem política.
Adam Smith antes de apresentar uma poderosa justificativa econômica para a busca do interesse próprio individual pôs ênfase nos efeitos políticos dessa busca, mostrando uma ambivalência em relação ao capitalismo nascente. Na manifestação à divisão do trabalho, considerando valores daquela época, lamenta a perda de espírito marcial e das virtudes como uma consequência tanto da divisão do trabalho quanto do comércio em geral. Referindo-se ao “homem cuja vida inteira é gasta em executar algumas operações simples“, diz: “A respeito dos grandes e amplos interesses de seu país, ele é completamente incapaz de julgard+ e a não ser que esforços muito particulares tenham sido tomados para torná-lo de outra forma, ele é igualmente incapaz de defender o seu país na guerra…. “Essas são as desvantagens do espírito comercial…“
Quais monges discutindo máximas do evangelho, pensadores perguntavam-se qual seria a finalidade da avareza, da ambição, da busca da riqueza, do poder e da superioridade. E como resultante, …, é a vaidade, não o sossego ou o prazer, que interessa aos homens. Rousseau foi na mesma direção quando diz que “é fácil de ver que todos os esforços são direcionados a dois objetivos apenas, a saber, as conveniências da vida para si e a consideração por parte dos outros“. Coube, no entanto a Adam Smith sintetizar, dizendo que “o impulso pela vantagem econômica não é mais autônomo, mas torna-se um mero veículo para o desejo pela consideração“.
Riqueza e poder sempre andaram juntos. A ideia de que o poder corrompia era corrente. Montesquieu afirmava que todo homem que tem poder tende a abusar desse poderd+ ele irá até o ponto em que encontra barreiras. O amor pelo poder é naturald+ ele é insaciáveld+ quase constantemente estimulado, e nunca saciado pela posse. Adam Smith compartilhava esta ideia afirmando que o impulso em direção ao poder é autopropulsor e insaciável.
Para deter o poder e de alguma forma impor-lhe limites, Montesquieu concebeu o princípio da separação de poderes e expressou a sua necessidade: “Para que não haja abuso de poder, é necessário que, através da disposição das coisas, o poder seja detido pelo poder”. Uma das formas de detê-lo é promover sua separação. Há, no entanto outra forma que é a promoção da riqueza dos cidadãos, o que limita o alcance das ações dos soberanos, que são desta forma impelidos, por razões de interesse próprio, a promover o interesse geral.
Debatendo as consequências políticas do desenvolvimento econômico, Hirshman dá espaço a ideias de Ferguson, como “em algumas nações o espírito do comércio, preocupado em garantir os seus lucros, assumiu a direção da sabedoria política”d+ “a riqueza individual pode levar ao governo despótico, resultado da corrupção das repúblicas através da luxúria e da prodigalidade”d+ “o medo de perder a riqueza e as situações nas quais herdeiros de uma família se encontram passando necessidades e pobres, em meio à afluência, são razões pelas quais o fundamento da construção da liberdade pode servir para apoiar a tirania”d+ “instabilidades favorecem a aceitação de “governos fortes” que prometem afastar perigos reais ou imaginários” e “a liberdade nunca está correndo um perigo maior do que quando medimos a felicidade nacional (…) pela mera tranquilidade que pode se aplicar à administração equitativa”.
Tudo, porém, tem seu preço. Se para Ferguson “é mais fácil e rápido adquirir o gosto pelos bens materiais do que desenvolver os esclarecimentos e hábitos da liberdade“, para Tocqueville “as pessoas negligenciam a parte principal, que é permanecer senhoras de si mesmas“. E diz mais: “uma nação que exige de seu governante nada além da manutenção da ordem já é uma escrava no fundo do seu coraçãod+ é a escrava de seu bem-estar, e o homem que deve escravizá-la pode surgir em cena“.
Guizot também lembra o peso da economia sobre o poder: “É um erro (…) acreditar que é o rei Luis Felipe que reina e ele não se engana a esse respeito. Ele sabe, tão bem quanto nós, que acima da Constituição está a sagrada, venerável, sólida, afável, graciosa, nobre, jovem e toda-poderosa moeda de cinco francos“.
A livre iniciativa ainda é brindada com outros argumentos a seu favor, além dos que interessam ao capitalismo. Assim, a propriedade privada, e em particular da propriedade privada dos meios de produção, é essencial para fornecer às pessoas uma base material para discordar, tirando do vazio a possibilidade de resistência contra as autoridades. O principal apoio a este argumento “moderno” no que diz respeito às oportunidades de discordância vem da comparação entre países capitalistas e socialistas.
Hirshman, contudo, diz que ele foi formulado bem antes, quando a propriedade privada ficou sujeita a um ataque sistemático e que outras medidas sociais concebíveis foram exploradas detalhadamente. Diz que o moderno argumento político a favor do capitalismo, que é hoje associado a autores como Mises, Hayek e Milton Friedman, foi originalmente apresentado por ninguém mais que Proudhon! Ora Proudhon é expoente do anarquismo, linha socialista que quer uma sociedade sem Estado! Proudhon dizia que propriedade é roubo. Apesar de ser crítico eloquente da instituição da propriedade privada, Proudhon também temia o enorme poder do Estado. E nos seus últimos escritos ele concebeu a ideia de opor a esse poder um outro poder “absolutista” semelhante, o da propriedade privada. Foi em meados do século XIX, quando a propriedade era vista como uma força selvagem, ilimitada e revolucionária que Proudhon deu a ela o papel de contrabalançar o poder igualmente terrível do Estado. Ele usa o termo “contrapeso“. É o melhor argumento de Proudhon para os méritos políticos do capitalismo. Caberia aqui especular em torno da lógica dos atuais quebra-quebras, que dizem de inspiração anarquista…
Na conclusão o autor analisa algumas críticas ao capitalismo. Referindo-se à mais atraente e influente delas, que se refere à “ênfase no aspecto repressivo e alienante do capitalismo, de modo que ele inibe o desenvolvimento da personalidade humana completa“, comenta: “ora, era esperado e suposto que o capitalismo reprimisse determinados impulsos e tendências humanas e que moldasse uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais unidimensional“. Essa posição, que parece hoje tão estranha, serviu para contrapor-se ao medo da força das paixões humanas. Em suma, supunha-se que o capitalismo realizasse exatamente aquilo que em breve seria denunciado como sendo o seu pior aspecto!
Na mesma linha, o triunfo do capitalismo montou o cenário idílico para a crítica romântica da ordem burguesa como “empobrecida em relação a épocas anteriores, pois, no novo mundo parecia faltar nobreza, grandeza, mistério e acima de tudo, paixão.” Segue esta toada a teoria da alienação de Marx. Antes o mundo das paixões precisava ser exorcizado o máximo possível, … agora as paixões fazem falta à “personalidade humana completa“!
Por fim, a teoria de Schumpeter sobre o imperialismo, afirma que “a ambição territorial, o desejo bélico em geral não eram a consequência inevitável do sistema capitalista, como os marxistas desejam. Para ele o próprio capitalismo não poderia contribuir para a conquista e a guerra, pois seu espírito era racional, calculista e dessa forma contrário a correr riscos na proporção implícita em guerras e outras excentricidades“.
Concluo. Não há ordem social que sobreviva quando fracassa em resolver os problemas em função dos quais foi adotada. A longa vida do capitalismo o classifica como uma força inexorável da história, para usar a expressão de Marx. Tem fundamentos nas paixões humanas. Marx e Engels, enquanto puderam, se deleitaram com ele. Porque condenar o mundo inteiro se hoje faz o mesmo? A humanidade não é … humana?
Renato A. Rabuske
Professor aposentado