O século XXI se revela cada vez mais preocupante, confirmando prognósticos pessimistas outrora feitos[1].
No plano internacional, o ódio e o extremismo aos poucos dominam e protagonizam a agenda política. As tensões e ressentimentos decorrentes das covardes agressões postas pelas políticas sionistas de Israel foram amplificadas com a destruição da civilização milenar assentada no Iraque iniciada em 1991 por ocasião da primeira guerra do Golfo, e concluída após o 11 de setembro de 2001. Como recordam, naquela ocasião uma ocupação foi promovida pela coalizão ocidental liderada pelos Estados Unidos, o qual forjou “provas” de que o Iraque possuía armas de destruição massiva .
Este episódio foi a pá de cal no descrédito dos valores ocidentais, alimentando o fanatismo em toda região e com consequências globais. Não por acaso, desta região advém o Cristianismo, o qual também é parte do explosivo cardápio onde se misturam religião e política em que estamos afundando.
Aqui no Brasil, nossos problemas, que não eram pequenos, também se avolumam, em que pese nossas virtudes como povo e recentes acertos e avanços.
A falência ética nacional reflete nossa abissal desigualdade que se reproduz indecentemente há séculos. Os escândalos se sucedem em avalanche, cada vez maiores: Mensalão, Petrolão, e agora a operação Zelotes, na qual a Polícia Federal acaba de denunciar que a fraude junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), pode chegar à 19 bilhões de reais.
Estimo que estes casos sejam apenas a ponta visível do iceberg. Lembro que, há aproximadamente 20 anos, fui membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente, representando a UFSC, e a pauta de nossas reuniões então eram dominadas pelos recursos das empresas contra multas recebidas por crimes ambientais, as quais obtinham, em geral, anistia[2].
Nossa sociedade sofre ainda com uma gigantesca, feroz e gratuita violência, em proporções maiores que qualquer guerra já ocorrida na história, com exceção das duas guerras mundiais. Todos os anos 100 mil morrem violentamente, sendo 50% destes em nossas estradas nos acidentes de trânsito, numa inadmissível carnificina. A grande maioria destas mortes são de jovens, especialmente negros e pobres.
Mas, a violência maior é que consideramos a violência um fato normal, é que já não a percebemos com horror nem nos emocionamos com a mesma, a não ser quando ela chega próxima a nós. Se não reagirmos, pois estas mortes são inadmissíveis, e podem ser evitadas, ficaremos cada vez mais bestializados.
Isto porque esta violência é geradora de medo, o qual corrói e impede a solidariedade natural para com o sofrimento do outro. Temos medo de acolher o caído. Este medo nos isola, e leva a nos tornar indiferentes àqueles que não são do nosso círculo pessoal, ao estranho, e até mesmo vizinhos, dificultando a imprescindível fraternidade da vida, pois não há felicidade sem o outro, uma vez que “somos incompletos” (Todorov, 1996: 163).
A presente crise de escassez de água no Sudeste brasileiro, mais que escancarar os pés-de-barro do nosso modelo econômico e a insustentabilidade de nossas megalópoles de concreto, desnuda os limites duma civilização que percebe um rio como apenas um recurso a ser explorado, ou mero curso d’água sujeito a determinados regimes hidrológicos. Entretanto, todo rio é composto por uma rede de entidades vivas, configurando um organismo que nasce, respira e vive de trocas com a vizinhança (Couto, 2011: 53)[3], se relaciona com os moradores do seu entorno, possuindo histórias, lendas, canções e identidade própria, como nos mostra a mÚsica “o Rio de Piracicaba”.
A recente chegada dos mais pobres ao mundo do consumo, nos shoppings e aeroportos, e nas universidades e outras instituições com a política de cotas, fizeram vir a tona sinais de racismo e ressentimentos assustadores que crescem entre nós, como se estivessem latentes e represados.
Diante de tamanha violência e preconceito, novos muros segregacionistas se levantam por toda a parte, e nos tornamos cada vez mais intolerantes. Exemplifico apenas com os projetos de lei na Câmara Federal que querem homofobicamente restringir o conceito de família ao núcleo formado pela união de um homem com uma mulher, ameaçando os direitos da comunidade LGBTT e a doção de crianças por casais gays.
Historicamente organizado para espremer as pessoas – o Brasil é uma máquina de gastar gente, dizia Darcy Ribeiro – nosso país nunca superou a colonialidade das relações sociais, a qual brutaliza, coisifica e inferioriza as multidões pela cor de sua pele, pela sua origem social, pela sua condição de gênero ou opção sexual.
Neste quadro, a crise atual que adentramos é preocupante, especialmente quando aqueles batalhadores empobrecidos e que há pouco emergiram tiverem de deixar para trás a casa própria recém adquirida se não conseguirem pagar as prestações da mesma, perderem o trabalho e renda que enfim conquistaram, e não puderem mais se manter na universidade ou mesmo seu filho na escola. O número crescente de famílias lideradas por mulheres (elas chefiam 93% das que são atendidas pelo Bolsa Família), em geral mães solteiras – os homens, cada vez menos presentes no seio das mesmas, por elas passam como companheiros transitórios – expõe uma realidade de desmantelamento familiar que deixa todos mais desguarnecidos diante da difícil desorganização social em curso, agudizando a mesma (Unger, 1999: 57).
Os tempos muito duros que o Brasil pode ingressar refletem também dificuldades maiores duma civilização cada vez mais assentada na individualização e na busca desregrada do interesse próprio, na qual é mais fácil descartar o outro “do que reparar fios esgarçados” dos relacionamentos (Ribeiro, 2014: 11). Partilhamos de valores que tornam todos nós descartáveis.
Semana passada, o desastre com o A 320 da Germanwings acende, mais uma vez, o sinal de alerta. Por que nos assustamos tanto com a inédita atitude do jovem co-piloto? Porque ele é parte duma geração hiper-conectada onde todos estamos inseridos em mÚltiplas redes sociais, porque nele culmina a sociedade hiper-competitiva e hiper-tecnologizada que somos.
O macabro ato do co-piloto alemão denuncia a presença da pulsão da morte e da auto-sabotagem, escancarou que forças desconhecidas, irracionais, muitas vezes incontroláveis, e profundas, habitam o humano. Diante delas cabe aceitar que a religião pode ocupar um importante papel, pois ela é uma “forma de conviver com o que não pode ser conhecido“, reconhece John Gray (2008: 309), mesmo sendo um ácido crítico do fenômeno religioso.
Não por acaso, o suicídio cresce e em breve será a maior causa mortis no planeta. Face à fragilidade da vida e à superficialidade das relações, urge proporcionar aos jovens “conexões pessoais duradouras e resistentes às crises” (CNBB, 2015: 32).
Gandhi já advertiu que o que destrói o ser humano é política sem princípios, prazer sem compromisso, riqueza sem trabalho, sabedoria sem caráter, negócios sem moral, ciência sem humanidade, oração sem caridade. Neste mundo carente de laços e valores éticos desponta a importância e a grandeza da Campanha da Fraternidade.
A CNBB, conjuntamente com outras igrejas cristãs, tem sido um importante protagonista de lutas e conquistas fundamentais em nosso país, como, por exemplo, no movimento “ética na política” que vai gerar a lei da ficha limpad+ ou na conquista da iniciativa popular na formulação de leis obtida no Último processo constituinte. Mas há que continuar os avanços institucionais, pois muito ainda resta para resolver, como acabamos de expor.
Este não é o momento para fazer a crítica do documento base da CF deste ano, como fizemos em seminário próprio do Regional Sul IV da CNBB em novembro passado. Cabe sim afirmar que a campanha deste ano, além de fazer jus a toda nobre história de 50 anos de CF, nela ressoa a magnífica presença do Papa Francisco, tanto no cartaz e material de divulgação, quanto no texto-base da mesma.
Francisco, ao protagonizar uma verdadeira reforma espiritual no catolicismo romano, desmontando a Última corte aristocrática europeia (leia-se “Vaticano”), e tendo um papel decisivo na reaproximação de Cuba com os Estados Unidos, desatando um nó que quase gerou um conflito nuclear há 50 anos, demonstra que o cristianismo ainda é uma referência imprescindível para a difícil travessia em que a humanidade se encontra.
O atual Papa torna nítido o vital e substancial valor da Igreja no mundo contemporâneo, como fonte de esperança num mundo melhor, numa humanidade renovada, desde que ela deixe de querer ser um implacável tribunal e seja fiel aos seus princípios e origem postos pelo mestre nascido humildemente em Belém.
*Armando Lisboa
Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC
Referências:
CNBB. Campanha da Fraternidade 2015: Texto-Base.
Couto, Mia. E se Obama fosse africano? Cia. das Letras, 2011.
Gray, John. Missa negra. Record, 2008.
Ribeiro, Renato. “Mal estar na sociedade brasileira”. In: Interesse Nacional, 27, 2014.
Todorov, Tzvetan. A vida em comum. Papirus, 1996.
Unger, Roberto. A segunda via. Carta Editorial, 1999.
[1] Este texto originou-se de conferência na Sessão Especial da Assembleia Legislativa de Santa Catarina em homenagem à “Campanha da Fraternidade, 2015”, proposta pelo deputado pe. Pedro Baldissera e realizada em 30.03.15.
[2] Após um episódio de manipulação grotesca daquele Conselho, eu e o colega que compúnhamos a representação da UFSC renunciamos a mesma, divulgando então um manifesto denunciando os fatos.
[3] Mia Couto, reconhecido escritor moçambicano, exerce a profissão de biólogo.