Em resposta a um texto que escrevi, “Por que devemos combater a insidiosa ideologia de gênero”, o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (IEG/UFSC) refere-se ao meu texto como se tratando de
“um conteÚdo superficial e incompetente na forma de abordar as questões de gênero e suas interseccionalidades, mostrando um desconhecimento total de décadas de estudos e pesquisas na UFSC e em instituições de todo o mundo e os pressupostos de organizações e agências de fomento nacionais e internacionais que reconhecem a necessidade de incluir a sensibilização das questões de gênero nas escolas, visando combater as desigualdades e discriminações presentes em nossa sociedade.”
Há vários equívocos nesta afirmação. Ora, o simples fato de haver décadas de estudos sobre as “questões do gênero” de modo algum dá veracidade ao objeto do estudo1 É preciso algo mais, que indique a razoabilidade em se considerar assertivas to tipo
“ser homem ou mulher é uma construção social e histórica e não algo biologicamente determinado” (*)
Ora, não há problema algum enquanto vocês, pesquisadoras do gênero, se limitarem a divulgar seus estudos entre seus pares, onde todos assumem assertivas do tipo (*) sem questionar a validade do que é posto. Contudo, que desejem introduzir compulsoriamente as “questões de gênero” a todos nas escolas é algo no mínimo questionável. Baseado em que, vocês advogam tal direito? Há alguma evidência experimental que indique a validade da assertiva (*)? Se não há, trata-se então apenas de uma ideia, de uma opinião, ou de uma crença e, assim, deve ficar restrito aqueles que a compartilham e não ser imposto indistintamente sobre todos.
Outro equívoco é justificar a necessidade de se introduzir as questões de gênero nas escolas como forma de se combater a desigualdade e discriminação na sociedade. Ora, se as “questões de gênero” constituem uma mera ideia que se suporta em assertivas tomadas sem nenhuma comprovação experimental que indique sua validade, então quem pode garantir sua eficácia? E, se não temos certeza da sua eficácia, por que haveríamos de arriscar introduzi-la obrigatoriamente nas escolas publicas? Além disso, não deveríamos também combater todos os tipos de discriminações, por exemplo, contra a raça, contra a religião, contra os nascituros, contra imigrantes etc.? Por que então privilegiar um determinado tipo de preconceito deixando tudo mais de fora?
Certamente que se há alguma superficialidade e incompetência no texto que eu escrevi isso se deve a própria superficialidade e incompetência com que alguns estudiosos do gênero assumem como razoáveis assertivas do tipo (*). Mas, analisemos ainda que de forma indireta a consistência de (*). Ora, se o que determina ser homem ou mulher não são as características biologicamente herdadas pelo indivíduo, segue-se então que não são as diferenças “genéticas”2 que determinam “ser homem ou mulher”. Ora, generalizando esse princípio pode-se muito bem aplicá-lo para o domínio da raça e afirmar que ser branco, negro ou mestiço não é determinado pelo gene, mas sim por uma atuação política ou social (e aí, como justificar políticas de inclusão social que são baseadas na distinção racial determinada pelo gene?). Mas, assumindo este princípio, por que então tanta indignação e incompreensão com o caso de Rachel Dolazel3, que pela sua militância em favor dos negros se assumiu como negra, até ser recentemente descoberta sua origem biológica como branca? Afinal, a causa da desgraça dela está sendo exatamente se passar como negra sendo, no entanto, branca. Curiosamente, o processo inverso é igualmente criticado quando Michael Jackson assumiu traços brancos sendo biologicamente negro. Afinal, seguindo os estudiosos do gênero, seria tão difícil assim assumir que ser branco, negro ou mestiço é uma construção social ou histórica e não algo determinado biologicamente? Entendem então por que há razões mais do que evidentes para pensar a assertiva (*) como irreal, ocupando no máximo apenas o papel de um condicionamento subjetivo do indivíduo e não um princípio geral? Vejam, a situação é semelhante ao de um indivíduo que se declara uma “cobra de vidro” e que fica imóvel todo dia num canto de seu quarto alegando que ao se mover pode se quebrar É um raciocínio logicamente válido que mostra que o indivíduo ao menos consegue pensar, pois tem o senso de auto-preservação mantido, contudo, é um raciocínio irreal, pois vemos que ele não é feito de vidro e também não se parece como uma cobra, muito embora alguém possa alegar que ser uma cobra de vidro também é uma “construção social ou histórica” (mesmo que não fique claro o que isso realmente signifique). Ou seja, a afirmação geral de que “o indivíduo é mesmo uma cobra de vidro” não pode ser visto como uma verdade em si (ah, sim, alguns céticos descartariam tal necessidade lembrando a célebre frase de Pilatos: “O que é a verdade”?), embora possa ter intrinsecamente uma lógica por quem a utiliza, e por aqueles que desejam considerá-lo realmente como sendo uma cobra de vidro e daí justificar décadas de estudos e pesquisas sobre as implicações de alguém se sentir como uma cobra de vidro.
Aproveito a oportunidade para explicar as pesquisadoras do gênero da UFSC sobre uma questão metodológica, pois vejo que ao se tratar coisas que tem a pretensão de assumir uma certa “cientificidade” não há necessidade de se estudar algo em profundidade afim de refutá-lo, basta ver se a experiência confirma as premissas que são postas.
Meu entendimento sobre isso vem da leitura da biografia de Richard Feynman escrita por Jagdish Mehra em seu livro “The Beat of a Different Drum: The life and science of Richard Feynman”, onde ele menciona, na pag. 130, que não precisaria estudar os trabalhos sobre a então incipiente teoria de campos formulada em livros de Paul Dirac e Walter Heitler nos anos 1930 para então pensar no problema da eletrodinâmica quântica. Nas palavras de Feynman:
“So I didn’t have to understand what they were doing. All that was wrongd+ that was going to give me trouble. So what I would learn from them, if I studied them, was what not to learn, and I didn’t learn quantum electrodynamics from those books”,
e tal recusa de Feynman se devia ao fato que a aplicação daquelas idéias tradicionais nos problemas levava a quantidades infinitas (e que deveriam ser finitas) e, portanto, incompatíveis com a experiência. Assim, por esta ótica, me disponho a debater conceitos com vocês, mas adianto que não tenho obrigação alguma de antecipadamente ler e estudar os seus trabalhos de décadas de estudo para então construir meu argumento (assim como Feynman não teve que ler décadas de trabalhos sobre a teoria de campo para construir a versão dele para a Electrodinâmica Quântica), já que não estou discutindo aqui “o pensamento dos estudiosos sobre as questões gênero” (o que me obrigaria a estudar globalmente sua idéias, algo que não tenho interesse em fazer). Posso tão somente me deter na parte observável, ou experimentável de seu discurso, por exemplo, expresso em assertivas como, por exemplo, aquela enunciada em (*) e, pela análise da consistência de tais premissas, inferir sobre a consistência ou não do todo.
Quanto à afirmação de que meu texto
“reforça e estimula atitudes preconceituosas, manifestações discriminatórias, discursos de ódio e intolerância, travestidas de “liberdade de expressão”, além de ofuscar uma das facetas mais graves das desigualdades sociais: a violência de gênero.”
peço que as pesquisadoras do gênero da UFSC apontem de forma precisa em meu texto onde isso é feito, a menos, é claro, que seja também uma premissa ad hoc dos estudiosos do gênero que todo aquele que não reconhece as premissas dos estudiosos do gênero sejam preconceituosos, algo que se for verdade apenas comprovaria que não devemos mesmo dar muita relevância as questões de gênero.
Notas:
1. A concepção aristotélica de que “o movimento de um corpo era sustentado pela ação de uma força agindo no corpo e que, cessada a ação dessa força, o corpo estaria em repouso” foi um paradigma que persistiu até o século XVI, sendo falso a luz do que se sabe hoje. Que muitas pessoas antes do século XVI tenham baseado suas pesquisas nesta visão aristotélica de modo algum confere um caráter de verdade ao objeto de suas pesquisas, bastou Galileu adotar um vigoroso processo experimental para refutá-la. Assim, o simples fato de se pesquisar algo há décadas, sem uma rigorosa justificação baseada na experiência, não assegura veracidade alguma do objeto da investigação.
2. Não tenho a pretensão de usar o termo “diferença genética” com o rigor que um biólogo talvez usasse, mas me contento em pensar que dentro do que se entende por “genética” possa ser possível observar diferenças entre home, e mulher, e da ordem das diferentes raças.
3. http://allenbwest.com/2015/06/liberal-logic-this-defense-of-rachel-dolezal-is-certifiably-nuts/
*Marcelo Carvalho
Professora do Departamento de Matemática
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