Voltou, forte, o debate sobre a ponte Hercílio Luz, na imprensa, nas redes sociais e nas listas de discussão.
Sem querer suscetibilizar quem quer que seja, não posso calar ante o que penso sobre a questão.
Começo notando que a ponte Golden Gate, ligando a cidade de São Francisco a Sausalito, na Califórnia, Estados Unidos, tem hoje 78 anos de operação, sem qualquer interdição. Nem sequer se pensa, ou jamais se pensou em tal coisa. Já a nossa ponte Hercílio Luz sofreu sua primeira interdição jovem ainda – tinha apenas 56 anos -, em 1982.
Qual a principal razão para tanta diferença entre Golden Gate e Hercílio Luz? Pode-se alegar que a Golden Gate, embora concluída apenas 11 anos após a Hercílio Luz, tenha incorporada uma tecnologia bem superior. Não creio apenas nisso. Creio também em outros fatores, entre os quais a irresponsabilidade e incompetência crônicas de nossos governos, que abandonaram a bela obra às intempéries, sem qualquer sistema de manutenção permanente. Falo isto sem medo de errar, pois falo como observador visual e crítico desde que me entendo como pessoa.
Já a ponte Golden Gate ganhou uma equipe de manutenção permanente no dia em que foi inaugurada. Até documentário já assisti sobre isso. A ponte é percorrida diariamente, desde 1937, quando foi inaugurada, por uma equipe de operários treinados que tentam localizar e marcar todo e qualquer sinal de deterioração. Uma outra equipe chega mais tarde, vê e reconhece o sinal e faz as correções devidas. Com isto pode-se dizer que a Golden Gate ainda terá muitos 78 anos de vida à frente. Já a abandonada ponte Hercílio Luz, coitada… Cada ponte tem a duração que seu povo merece?
Quando da primeira interdição da ponte Hercílio Luz, percebi um frisson na UFSC e, em particular, no Departamento de Engenharia Mecânica. Eu, embora doutorado em dinâmica estrutural, tendo tido como orientador um professor (Denys Mead ) que ensinou fadiga estrutural aos americanos, fui ostensivamente ignorado. De todos os lados apareceram “especialistas” que formados em comissões de salvação da ponte, falavam sobre o que fazer e o que não fazer. Eu apenas recebia os respingos de tão elevadas discussões.
Incomodado com a discriminação (até nessas horas a política de grupos e confrarias emergem) não acompanhei de perto o que se fazia, ou se deixava de fazer. Ouvi dizer (assim mesmo, ouvi dizer) que um (ou mais de um, sei lá) olhal apresentava uma trinca e que isto foi a principal razão para a interdição.
Não sei se aqueles especialistas mediram o comportamento da trinca ao longo dos anos. Falo isto porque pode ser que a trinca lá sempre estivera, que aparecera no processo de fabricação do olhal, combinado com as características do aço (excesso de carbono, etc.). Pode ser, entretanto, que tenha surgido em consequência do carregamento dinâmico (carga flutuante no tempo) sobreposta ao carregamento estático. O carregamento estático foi o único levado em consideração no cálculo estrutural. (Tenho uma cópia do memorial de cálculo da estrutura). Neste caso, a história temporal da trinca é de vital importância para se calcular a velocidade de propagação da mesma e se avaliar quando ocorrerá a velocidade catastrófica. Ou seja, esta análise, que desconfio nunca foi feita, se alguma vez aventada, permitiria a avaliação da vida remanescente da estrutura.
Mais ainda: se se observar que a trinca lá sempre esteve por cinquenta e seis anos, sem sinais de progressão (suponho que este seja o caso), por que se preocupar com ela? Se foi isto o que realmente aconteceu, não há dinâmica estrutural que preveja, com probabilidade maior do que zero, que a ponte esteja em risco de desabamento.
Se a constatação (se houve tal constatação) foi de que houve progressão das trincas ao longo do tempo, estudo mais completos teriam sido necessários, como se explicou acima, inclusive estudos laboratoriais.
Mas é preciso deixar claro que a simples constatação de trinca não é motivo para interdição ou desmonte, como se está falando por aí. Trincas são um caso comum em estruturas, inclusive estruturas aeronáuticas e, nem por isso, interdita-se o avião ou se desmonta o avião. Existem técnicas de estancamento da propagação das trincas, enquanto a questão é remetida a especialistas e laboratórios para decisões mais precisas. Enquanto isso a aeronave pode continuar voando, sem riscos adicionais para os passageiros e tripulação.
Recomendo, para quem deseja se inteirar melhor do que falo, assunto longo e complexo, as seguintes publicações:
1) Anderson, T. L., Fracture Mechanics, Taylor E Francis
2) Augusti et alii, Probabilistic Methods in Structural Engineering, Chapmann and Hall.
Claro que, pelo fato de ter ficado à margem do que se fazia (se algo relevante se fez) na UFSC, o meu texto acima está contaminado de incertezas, além daquelas que o problema de engenharia da Ponte Hercílio Luz necessariamente contém e com as quais uma equipe competente tinha de ter tratado. Mas, mesmo assim, pelo que ouvi e pelo que imagino do problema em si, não aceito passivamente (isto é, sem estudos realmente pertinentes) a proposta de demolição da ponte. Há todo um universo de considerações de engenharia entre o nada fazer e o demolir.
Agora, para finalizar: o affair da ponte Hercílio Luz me lembra o do pároco que, tendo de fazer uma reforma da sua igreja, jamais permite que ela (a reforma) chegue ao fim. Porque a conclusão da reforma significa o fim das doações para a mesma.
Mutatis mutandis e levando em conta as escalas dos problemas da ponte e o da igreja, a analogia é perfeita.
*José J. de Espíndola,
Ph.D., é doutor pelo ISVR da Universidade de Southampton, Inglaterra, Professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado, e Dr. Honoris Causa da Universidade Federal do Paraná. É o criador do Laboratório de Vibrações e Acústica da UFSC. Detentor da Medalha da ABCM pelas suas contribuições à Engenharia Mecânica e detentor da medalha João David Ferreira Lima, pela sua contribuição ao ensino superior em Santa Catarina, entre outras honrarias.