A gênese da contra-revolução de 1964 remete a uma série de eventos que se inicia com a renúncia de Jânio Quadros e a consequente oposição dos ministros militares a posse do vice-presidente João Goulart. A grave crise institucional que se seguiu foi inicialmente contornada pela adoção do parlamentarismo e, mais tarde, pelo plebiscito que restituiu o presidencialismo, ocasião em que Jango assume o poder de fato. No entanto, a crise nunca fora completamente resolvida tendo sido aprofundada de maneira decisiva pela forma com que o governo Jango sucumbia frente à subversão comunista, o que ficará claro pela análise que faremos a seguir. Neste sentido, a contra-revolução de 1964 se insere como uma reação ao que é chamado a “segunda tentativa de poder pelos comunistas” [1]. A primeira tentativa se refere à fracassada Intentona Comunista de 1935, enquanto que a terceira tentativa se refere à luta armada que se seguiu ao regime militar e cujo objetivo era impor à nação uma ditadura comunista [1,2,3,4] como admitem Jacob Gorender, um conhecido comunista, e Daniel Aarão Reis, ex-militante do MR8 [5].
Analisando o início da crise, surge então a questão:
O que levou os ministros militares a se opor a posse de Jango?
O historiador Agnaldo Del Nero Augusto argumenta que tal posição era
“explicada pelos antecedentes de João Goulart que, quando ocupara a pasta do trabalho no governo Vargas, permitira ampla infiltração de ativos e notórios agentes do comunismo internacional em seu ministério”.
E prossegue lembrando que, na sua viajem a China, Jango fizera um pronunciamento radical revelando sua intenção de estabelecer no Brasil uma república popular no que “seria necessário contar com as praças para esmagar o quadro de oficiais reacionários”. De posse de uma gravação desse pronunciamento de Goulart, os ministros militares amadureceram a idéia de não deixá-lo assumir [1]. Alimenta ainda a suspeita sobre a inclinação golpista de Jango a grave denúncia feita pelo então deputado Armando Falcão em 22 de Novembro de 1963 quando afirmara que já em1960 João Goulart, na época vice de Juscelino, articulara junto a Leonel Brizola um golpe para derrubar Juscelino e, assim, evitar as eleições presidenciais, pois pressentiam que a candidatura de Lott não era forte suficiente para derrotar Jânio, o que de fato não era [3].
Há, contudo, certa distância entre uma possível tendência golpista de Jango e o golpe propriamente dito. No governo Jango, o impulso golpista era orquestrado pelos comunistas que sabiam explorar as contradições de seu governo. O caráter oscilante do governo Jango fica explícito ora quando ele se omitia e, de certa forma, apoiava as greves politizadas da poderosa CGT que causavam sérios prejuízos ao país, ora quando via a necessidade de reformas de base necessárias para o país sem, no entanto, atentar para o equilíbrio de forças do Congresso, que dificilmente aprovaria reformas que consideravam demasiadamente radicais. Sua complacência com o radicalismo de Arraes em Pernambuco, e de Brizola e seu Grupo (paramiltar) dos Onze que do sul clamava “reforma ou revolução”, criava uma situação volátil que os comunistas viam como necessária para fechar o congresso sob pretexto do mesmo não aceitar as reformas de base. Isto fica evidente quando Prestes, em reunião com Krushev em janeiro de 1964, descreve a conjuntura nacional à cúpula soviética . Segundo Agnaldo Del Nero, Prestes relata que
“a luta pelas reformas de base constitui um meio para acelerar a acumulação de forças e aproximar a realização de objetivos revolucionários”,
,10< prossegue argumentando que “o arcabouço institucional impede as reformas, pois elas dependem de dois terços do Congresso, tornando-as irrealizáveis, dado que ele é majoritariamente anti-reformas. […] O grande trunfo será o dispositivo militar, capaz não só de barrar um golpe ou uma reação da direita, mas, por uma ação enérgica e com o apoio das massas, desencadear o processo de reformas.[ …] Implantaremos um capitalismo de Estado, nacional e progressista, que será a ante-sala do socialismo”.
Por fim, o golpista Prestes conclui seu relatório afirmando sua intenção de
“uma vez a cavaleiro do aparelho do Estado, converter rapidamente, a exemplo da Cuba de Fidel, ou do Egito de Nasser, a revolução-nacional-democrática em socialista “[1].
Vê-se claramente que para os comunistas as tão necessárias reformas de base não passavam de um meio para a tomada do poder. De fato, Ferdinando de Carvalho sintetiza bem a ligação entre o governo Jango e os comunistas:
“O Partido comunista era o núcleo central do planejamento do golpe de estado. João Goulart procurou associar-se a eles nessa preparação, criando uma Frente Popular ao qual o PCB estabeleceu uma série de exigências para integrar. A conspiração baseava-se no sucesso de duas ações preliminares: (i) o fechamento do Congresso e (ii) a dissociação das Forças Armadas”.
O primeiro objetivo seria consolidado no Comício da Central de 13 de Março quando seriam anunciadas as reformas de base que por sua vez seriam fatalmente vetadas pelo Congresso.
“Nessa ocasião, Brizola exigiu o fechamento do Congresso e a convocação de uma Constituinte para eleição de um Congresso Popular. Declarou que a violência seria respondida com a violência” [4].
O segundo objetivo seria consolidado por uma cerimônia no automóvel clube onde Jango se confraternizaria com os suboficiais e sargentos que haviam se amotinado, estabelecendo a indisciplina, a quebra da hierarquia militar, e incapacitando a ação combativa das unidades [4]. E foi assim, no meio de uma grande instabilidade política e social iniciada na posse de Jango e que se seguiu por todo seu governo, que a contra-revolução foi se formando tendo sido deflagrada com o movimento das tropas do general Olímpio Mourão Filho vindo de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro na madrugada de 31 de Março de 1964.
A descrição acima se refere apenas aos aspectos locais que determinaram a contra-revolução de 64, ou seja, aos eventos que estão diretamente relacionados a organização de forças que em 31 de março de 1964 intervieram depondo Jango e revertendo o plano dos comunistas tomarem o poder. Contudo, podemos ver 31 de Março de 1964 como o marco da reação ao que Jacob Gorender identificou como
“… o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século, até agora. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse.” [5]
Neste sentido, a contra-revolução se insere como uma reação ao desdobramento natural das ações comunistas para tomar o poder iniciadas em 1935 com a intentona comunista.
Expus de forma simplificada alguns fatos bem documentados que traçam a gênese da contra-revolução de 1964 ao caráter golpista do governo Jango. Recomendo a leitura de [1,2,3] para uma análise aprofundada de muitos outros eventos que mostram a ação dos comunistas para tomar o poder. Na época, os comunistas do PCB seguiam a “via pacífica” preconizada por Moscou sem, no entanto renunciar a luta armada, caso fosse necessário. Seus ex-correligionários do PCdoB pregavam formas mais violentas inspiradas no maoísmo. Numa ou outra forma, a intenção dos comunistas não deixava de ser o que era: um golpe, e que uma vez tomado o poder não mais o cederiam. A esquerda, em sua análise da contra-revolução de 1964, a que preferem chamar de golpe, prefere ignorar toda esta articulação comunista que motivou a contra-revolução. Talvez com pequenas variações, a leitura simplificada que a esquerda faz da contra-revolução de 1964 segue um mesmo enredo que essencialmente lê-se como “uma reação das classes dominantes burguesas a mando do imperialismo americano”. No entanto, nada apresentam de concreto quanto a participação americana como fator determinante para o desenlace da contra-revolução. Afirmam também que foi uma reação de forças reacionárias à reformas de base, ignorando que o próprio artífice das reformas, Celso Furtado, em seminário no Reino Unido em 1965, reconhecera que o país não detinha as condições políticas necessárias para implantar as reformas [6]. Dizem a verdade apenas quando afirmam que o governo Jango foi democraticamente eleito ( melhor seria dizer constituído), mas, sofrendo de uma amnésia ou de um cinismo coletivo, não vão além disso ignorando toda a articulação golpista deste mesmo governo como fica claro pela análise de [1,2,3]. Infelizmente, uma parte significativa da esquerda não só ignora estes fatos como prefere repetir “ad infinitum” o mantra recitado por militantes bem-versados na doutrinação marxista e que, exercendo a primazia da desonestidade intelectual, ensinam apenas uma versão parcial dos fatos negando a toda uma geração de jovens a possibilidade de uma análise crítica mais ampla que só se consegue pelo acesso as mais variadas fontes.
Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática da UFSC
Referências:
[1] “A Grande Mentira”d+ Agnaldo del Nero Augusto
[2] “Projeto Orvil”d+ http://www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf
[3] “A Verdade Sufocada”, Carlos Alberto Brilhante Ustra
[4] “Os Sete Matizes do Vermelho”, Ferdinando de Carvalho
[5] “Combate nas Trevas”d+ Jacob Gorender
[6] “1964: Golpe ou Contragople”d+ Hélio Silva