Um artigo publicado na seção “É isso mesmo?” do jornal O Globo [1] assinala a complexidade do tema da reforma da previdência colocando em lados opostos auditores fiscais da receita federal filiados a Anfip, e especialistas em contas públicas e da equipe econômica.
A origem da divergência parece ser a metodologia usada no cálculo das receitas e despesas da previdência que, por sua vez, nos coloca diante da diferença entre seguridade social e previdência [2]. De forma simplificada, a seguridade social contempla as áreas da saúde, assistência social e previdência, assim, ao tratarmos da previdência social temos que ter em mente que ela é uma das áreas contempladas pelo que se denomina seguridade social, de modo que o que se gasta na previdência é tirado do montante da seguridade social. É neste ponto que entra a constituição federal dispondo como se estrutura os gastos e contribuições em cada uma dessas áreas, com atribuições específicas de empresas, indivíduos, governos etc.
A fonte de recursos para a seguridade social vem na forma de contribuições previdenciárias, rendas de sorteios, loterias e apostas, além de impostos e contribuições com destinação exclusiva criada pela constituição de 1988. Imaginemos então que o montante arrecadado com esses tributos e contribuições gere uma sobra. Como o governo poderia usar esses recursos que sobraram para outros gastos? Afim de agilizar os gastos do governo, fez-se uma emenda à constituição onde se criou um mecanismo chamado DRU (Desvinculação das Receitas da União) que permite ao governo usar como quiser até 20% desses recursos. O economista Raul Velloso, criador da DRU, explica que,
“… a ideia surgiu para flexibilizar o dinheiro dos impostos criados em 1988, muitos com destinação exclusiva. Mas a estratégia só tem sentido quando sobra dinheiro da Seguridade Social — que, então, pode ser movimentado para dar conta de outros gastos.
Como os gastos com Previdência são obrigatórios, o governo até desvincula esse dinheiro, mas tem de devolver o que tirou e complementar para pagar os benefícios. Esse déficit é bancado pelo Tesouro Nacional.” [1]
Esta última parte da citação acima é importante, pois equivale a dizer que as contribuições ao INSS não são afetadas pela DRU.
O argumento da Anfip para o superávit da previdência
Segundo o texto [1], os auditores da Anfip afirmam que não haveria rombo nas contas da previdência social
“… se as contas do orçamento da Seguridade Social fossem calculadas de forma diferente. Segundo a entidade, o governo deixa de contabilizar receitas e acrescenta despesas a esse orçamento, o que provoca o rombo.”
Como parte da não contabilização das receitas, a Anfip identifica a DRU que no ano de 2015 desvinculou R$ 66 bilhões do orçamento da seguridade social, e também a desoneração de certos setores da economia, que acarreta uma menor contribuição das empresas à seguridade social. Já entre as despesas acrescentadas à seguridade social, que os auditores da Anfip a princípio alegam que não deveriam ser incluídas, tem-se os gastos com a previdência dos servidores públicos, algo estimado em 77 bilhões. A Anfip alega que os gastos previdenciários dos servidores públicos não deveriam ser incluídos na conta da seguridade social porque “são regidos por outro capítulo da Constituição Federal, que detalha o funcionamento dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS)”.[1]
Considerando então a não contabilização das receitas por conta da DRU [3], as desonerações concedidas pelo governo, e a inclusão de despesas que não deveriam ser incluídas os auditores da Anfip calculam que no ano de 2015 a seguridade social apresentou um superávit de R$ 11.5 bilhões.
O argumento dos especialistas em gestão pública e da equipe econômica para o déficit da previdência
Os especialistas em contas públicas e da equipe econômica discordam da metodologia usada pelos auditores da Anfip e argumentam que, mesmo desconsiderando os R$ 66 bilhões que a DRU desvinculou do orçamento da seguridade social em 2015, a seguridade social ainda assim apresentaria um déficit de R$ 106 bilhões naquele ano. Conforme lemos em [1]
“…para o governo, é correto contabilizar os gastos com servidores nessa parte do orçamento.
— Hoje, o déficit (da Previdência) dos servidores públicos é de R$ 77 bilhões. Eles falam que não é um gasto com seguridade social porque não está no capítulo da seguridade social. Da mesma forma que gasto com professor é de educação, gasto com aposentado, do setor público ou privado, tem que ser Previdência — diz Arnaldo Lima, assessor especial do Ministério do Planejamento.”
Em relação ao argumento da Anfip de que a retirada das desonerações resolveria o déficit previdenciário, o ministro do planejamento Dyogo Oliveira rebate afirmando que
“… as desonerações às empresas na área previdenciária não são computadas para o saldo negativo, pois são compensadas pelo Tesouro Nacional”. [4]
Oliveira alega ainda que outras desonerações – das exportações, a entidades filantrópicas e ao microempreendedor – “são justificáveis do ponto de vista do mérito social”.[4]
No mesmo texto, de acordo com Dyogo Oliveira,
“… o crescimento do gasto previdenciário é um dos principais motivos do aumento do déficit da seguridade social que, entre 2002 e 2016, passou de 1,5% a 3,9% do Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e riquezas produzidos em um país).
“Ela [Previdência] foi ganhando espaço e reduzindo a participação das demais despesas de seguridade social”.” [4],
O que fazer?
Estamos diante de duas perspectivas diferentes sobre a questão da contas da seguridade social, e isso influencia a percepção que se tem sobre a necessidade da reforma da previdência.
Dada a divergência de opiniões entre os ditos especialistas da área, é necessário um debate franco e qualificado entre os dois lados, algo onde os debatedores possam não apenas defender sua posição, mas também apontar o erro na argumentação do outro. O que não podemos aceitar é que algo tão importante como a reforma da previdência fique refém de percepções ideológicas ou políticas pré-concebidas de quem quer que seja. [5]
A APUFSC perdeu uma oportunidade única de organizar este debate ao promover um encontro
https://www.youtube.com/watch?v=iojUfScB1JM.
onde o que prevaleceu foi a visão contrária a reforma da previdência. Por que esta assimetria? É um fato que existe nas universidades um segmento bastante militante e barulhento que tenta criar artificialmente um ambiente de rejeição as reformas, mas será que tal ambiente deve influenciar um sindicato de professores de modo que tenhamos um evento onde se expressa apenas uma perspectiva sobre o tema da reforma da previdência? Será que essa militância está presente em instituições como a FGV a ponto de não termos ninguém ali que possa dar um argumento a favor da reforma da previdência e que aceitaria participar do encontro, caso fosse convidado? Seria muito proveitoso a APUFSC promover um debate sobre a reforma da previdência convidando especialistas a favor e contra a reforma. Seria recomendável também que na resenha de notícias vinculada na página do sindicato fosse dado espaço a textos publicados em jornais e revistas que defendem a reforma da previdência, algo que não tem acontecido, o que ajudaria muito quem deseja ter um posição mais esclarecida sobre o tema e vê com desconfiança o já esperado burburinho anti-reforma presente no ambiente acadêmico.
Notas
[1] http://blogs.oglobo.globo.com/eissomesmo/post/nao-ha-deficit-na-previdencia-social-e-isso-mesmo.html
[3] http://fundacaoanfip.org.br/site/2016/06/a-dru-e-o-falso-deficit-da-previdencia-social/
*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática