Segundo especialista, implementação da proposta nas escolas depende de projetos interdisciplinares
O Brasil foi o país pior colocado em relatório que ranqueia a capacidade de identificar notícias falsas. O dado é da pesquisa Truth Quest realizada com 21 países pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma organização econômica intergovernamental com 38 países membros. Segundo Claudemir Edson Viana, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, a posição reflete a dificuldade na recepção crítica de informações causada pela evasão escolar.
“Uma população pobre que precisa trabalhar desde criança fica fora da escola e também de uma educação reflexiva, problematizadora, que leva o sujeito a desenvolver sua capacidade de investigação, sua autonomia de pensamento e de reflexão”, diz o docente.
Por defender que a desigualdade social é a responsável pelo cenário revelado pelo relatório da OCDE, Viana destaca a necessidade de uma educação cívica, como a educação midiática, provocada por educadores e familiares, que fomente sentimentos de responsabilidade e comprometimento social, transformando a sociedade com mais oportunidades. “A educação midiática traz essa perspectiva humanista de produzir comunicação a respeito de temas que afetam as pessoas, promove e valoriza práticas dialógicas e respeitosas de comunicação, e não simplesmente emite uma informação, uma opinião.”
Educação midiática é o termo adotado para a política pública que queira promover uma educação para uma comunicação mais responsável, crítica e reflexiva. Intitulada como educação para a comunicação, ela é uma das áreas de intervenção social da educomunicação, um campo teórico-prático que parte da compreensão de que comunicação acontece em um cenário cultural resultante das relações interpessoais. Essa proposta trabalha para educar tanto para a recepção mais crítica, como para uma produção, já que na era digital nós temos uma presença produtiva que deve ser responsável e positiva para um convívio em sociedade. O conceito é adotado no Brasil através da Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal que em maio de 2023 apresentou o processo de escuta pública para construção de política pública sobre educação midiática, e em outubro do mesmo ano lançou a Estratégia Brasileira de Educação Midiática (Ebem). O documento reúne um conjunto de iniciativas desenvolvidas pelo governo federal para a promoção da educação e o uso das mídias pela população brasileira.
É por promover uma comunicação mais reflexiva e responsável que a educação midiática ajuda no combate à desinformação. “A educação midiática, a partir da provocação da reflexão crítica, faz as pessoas entenderem o mecanismo da rede comunicacional e aprimorarem a capacidade de definir o que pode ser verdadeiro, refletirem sobre o próprio papel para não proliferar fake news e, inclusive, para produzir conteúdo desmentindo informações falsas”, afirma o professor.
Implementação no ensino
Um levantamento realizado pela Lupa, plataforma especializada em fact-checking, revelou que, de 746 novas disciplinas criadas nos currículos do Novo Ensino Médio nos 27 Estados brasileiros, apenas 34 abordam educação midiática e desinformação. Embora o baixo número cause espanto, para Viana, que também é secretário executivo da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais da Educomunicação (ABPEducom), a divisão em disciplinas específicas ignora a proposta central da educação midiática, que é a aplicação e articulação cotidiana. “Um currículo que é dividido, como ainda uma sociedade que herdamos do século 19, em pequenos lotes de áreas de conhecimento que não se articulam, não se cumprimentam, está bastante distante da realidade e nada próximo do que deve ser a aprendizagem através de práticas comunicativas.”
Para Viana, a educação midiática deve ser explorada de forma transversal, através de projetos temáticos que unam duas ou mais disciplinas. Inclusive, por diversas vezes, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento de caráter normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação, propõe o uso dos conteúdos culturais e midiáticos que estão presentes no dia a dia das crianças e adolescentes no processo educativo. “Ela deve ser explorada por qualquer docente de qualquer disciplina, ou em projetos culturais especiais de uma escola, como uma semana comemorativa de algo, e pode ser também parte de um projeto de extensão, que envolva além da escola. Ou seja, a partir da organização curricular diferenciada e complementar ao tradicional”, diz Viana.
Alguns projetos interdisciplinares, como explicou o docente, já existem em diversos Estados do Brasil. Na cidade de São Paulo, a implementação do projeto Educom.Radio, em 2001, marcou o início da formação midiática. A iniciativa foi desenvolvida pela USP, pelo Núcleo de Comunicação e Educação. Após quatro anos de desenvolvimento com atendimento a 11 mil participantes entre professores, estudantes e membros da comunidade, a proposta se tornou uma política pública de educação com a criação da Lei 13.941 no Programa Educom – Educomunicação pelas Ondas do Rádio. Em 2005, a cidade também foi berço da criação do Imprensa Jovem, um projeto da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo que incentiva o uso de recursos móveis, como celulares, na produção de conteúdos midiáticos pelos estudantes, e atualmente é desenvolvido por mais de 150 escolas com apoio do Núcleo de Educomunicação.
Proibição dos celulares nas escolas
Em novembro deste ano, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou o projeto de lei 292/2024 que proíbe estudantes de escolas públicas e privadas de utilizarem celulares e outros dispositivos com acesso à internet durante o período de permanência escolar. A proposta foi aprovada por unanimidade, e o governador do Estado, Tarcísio de Freitas, sancionou o projeto de lei, em medida publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo do dia 6 de dezembro.
O projeto de lei define que, quando houver necessidade pedagógica para utilização de conteúdos digitais ou ferramentas educacionais específicas, o uso é permitido. O uso é apenas para o período da atividade pedagógica, devendo os dispositivos ser armazenados e mantidos inacessíveis aos alunos até uma nova autorização. Para o professor Viana, é justamente esta exceção que as escolas precisam para educar para um uso crítico e saudável das mídias. Ele também destaca que a forma como este projeto de lei foi interpretado pela sociedade é um retrocesso ao processo de educação dos meios de comunicação. “A forma como essas leis chegam à sociedade e são colocadas pela própria mídia não contribui para o processo de uma educação, para um uso crítico, sustentável, responsável dos meios de comunicação”, finaliza o professor.
Fonte: Jornal da USP