Universidade, Crise e Identidade – e os Laboratórios Empresas

A atual crise nas universidades públicas brasileiras deve ser acompanhada com preocupação pelos vários segmentos sociais, porque são instituições fundamentais para a criação e a manutenção de uma sociedade livre e democrática.  A ameaça ao funcionamento das Universidades Federais foi ampliada em função do orçamento insuficiente dos últimos anos, e ganhou dramaticidade com a restrição de verbas por parte do governo federal para o ano de 2018.  Os primeiros sinais anunciam que o corte de 40% no parco orçamento será o golpe fatal no precário orçamento universitário. Mas as universidades estaduais também não estão melhores, e até mesmo as gigantes paulistas padecem de uma crise que flerta com a insolvência.

A partir do caos pode, eventualmente, surgir boas soluções, mas certamente vão emergir alguns monstros que jamais voltarão para a caixa.

A crise está levando a Universidade a criar suas soluções orçamentárias, e entre elas, a possibilidade de realização de pesquisas remuneradas para as empresas privadas. Até aí não existem novidades, se as pesquisas forem de fato, relacionadas à geração de conhecimento e disseminadas na sociedade por meio das teses, dissertações e artigos científicos. As conexões entre as universidades e as empresas no processo de inovação, que está em alta no mercado, confere a legitimidade e a necessidade desta parceria. Mas tem ocorrido uma perversão no processo quando os laboratórios avançam sobre o mercado de “serviços comuns”, que prescindem dos conhecimentos altamente especializados e não resultam na produção científica. Ou seja, é a mera realização de serviços demandados pelo mercado. Evidentemente, estes serviços são maquiados para sugerir um conteúdo de pesquisa e assim justificar o trânsito nos conselhos departamentais, que demonstram uma tolerância excessiva. Desta forma, ocorre um evidente desvio de função, porque as Universidades devem estar conectadas à geração de conhecimento e à formação de pessoas para o benefício sociedade. Mas, mesmo relevando este desvio função, surgem fatores ainda mais graves que desequilibram a competitividade de mercado. Os laboratórios das Universidades são dotados de equipamentos concedidos pelas financiadoras de pesquisas, instituições mantidas pelos impostos recolhidos por toda a sociedade. A mão de obra utilizada, de alunos de graduação, de pós-graduação e iniciação científica, é, em sua maior parcela, mantida por auxílios à pesquisa das próprias financiadoras, e os salários dos professores e os locais de trabalho, laboratórios dos departamentos, são custeados pelas universidades. Por fim, ocorre a utilização desautorizada da grife destas instituições estaduais e federais no marketing dos serviços oferecidos pelos laboratórios-empresas.

Este acervo de argumentos ainda carece de uma explicação da comunidade acadêmica e dos seus dirigentes. Primeiro, para a própria sociedade, que possui o mesmo direito de usufruir destes benefícios, e, em segundo lugar, às centenas de empresas que estão no mercado, competindo pelos mesmos trabalhos, mas comprando seus próprios equipamentos, pagando os salários dos seus funcionários e os altos impostos associados, locando ou comprando instalações. Tudo isto impacta nos preços dos serviços e produtos e causa uma assimetria intransponível na competitividade do mercado. Este processo resulta no surgimento de laboratórios-empresas na área tecnológica, hipertrofiados e milionários, que avançam rapidamente sobre o mercado ocupado por empresas privadas. E, claro, os efeitos deste desequilíbrio na competitividade são determinantes na quebra ou das imensas dificuldades de manutenção das atividades e dos empregos de várias empresas que já sofrem com a crise atual. Não há como competir.

E deve piorar. No âmbito externo, as Universidades não demonstram possuir o fôlego para reagir ao avanço predatório dos governos estaduais e federais sobre o seu orçamento. No interno, as próprias instituições vão criando novos critérios para avaliação de docentes baseados na sua capacidade de geração recursos financeiros, e assim os professores-empresários vão assumindo também o controle político dos departamentos e regulamentando (ou desregulamentando) as atividades dos docentes segundo as suas diretrizes. Por outro lado, professores, alunos e funcionários convivem com uma questionável leniência em relação ao avanço dos professores-empresários, incentivados pelos recursos extras que estes projetos-serviços levam aos departamentos.

A comunidade universitária, por meio de seus conselhos departamentais, conselhos superiores e associações deve promover a discussão imediata desta questão, porque projeta estas instituições públicas e gratuitas em direção à privatização. Gradualmente, estes professores-empresários avançam sobre os cargos administrativos das instituições, seduzidos pela geração de recursos para a manutenção de uma estrutura paralela dentro de uma universidade, que vai transformando a crise orçamentária em uma crise de identidade, distante de sua função social.


Renato Vargas

Engenheiro Mecânico Graduado na Universidade Federal de Santa Catarina

Doutor pela Universidade de São Paulo

Co-Autor dos Livros

  1. 50 Anos do CNPq Contados pelos seus Presidentes. Setembro de 2002.

  2. 70 anos da Universidade de São Paulo, Depoimentos e Imagens. Maio de 2006.

  3. SEADE, Uma História Exemplar. Novembro de 2008.