Um cabo e um soldado

*Por Fábio Lopes

A certa altura da última reunião do Conselho Universitário, um discente que estava lá como convidado subitamente tomou a palavra para tratar de um assunto de seu interesse, que nem da pauta fazia parte. O reitor tentou interrompê-lo, mas ele seguiu em frente, sob a alegação de que se tratava de uma intervenção, e uma intervenção não está submetida às regras da universidade. A coisa ficou por isso mesmo, de modo que o rapaz sentiu-se à vontade para alugar os ouvidos dos conselheiros e do presidente dos trabalhos por cerca de quinze minutos. Mais tarde, soubemos que, para deixar o incidente ainda mais escabroso, o reitor havia recebido aquela mesma pessoa pela manhã – fora da agenda, desnecessário dizer. Vá o leitor tentar ser recebido no Gabinete do Prof. Irineu sem marcar previamente uma reunião…

De minha parte, assim que ficou claro que o estudante ia levar até o fim aquela violação grotesca do Regimento da Casa e o consequente ritual de humilhação da presidência dos trabalhos, retirei-me em protesto do recinto, para só retornar depois que a tal intervenção terminasse. 

Reconheça-se: não foi a primeira vez que o Conselho Universitário foi invadido por terceiros. Houve até ocasiões em que conselheiros foram mantidos em cárcere privado por horas a fio. Ocorre que, nos episódios anteriores, a interrupção forçada da reunião acontecia graças à quantidade intimidante de manifestantes. O dado novo é que o mais recente tapa na cara da institucionalidade foi perpetrado por um único indivíduo. Impossível não nos recordarmos neste momento da famosa declaração de Eduardo Bolsonaro a respeito de “um cabo e um soldado”. No caso do CUn, nem mesmo o cabo foi necessário. O Recruta Zero deu conta do recado sozinho mesmo.

Um pouco depois de meu retorno à sala dos Conselhos, pedi a palavra na seção de informes para solicitar ao reitor que explicasse o atraso no processo de licitação do plano de saúde de docentes e TAEs. Como se sabe, este precisaria estar encerrado em 1º de dezembro, mas, à semelhança de vários outros contratos essenciais ao bem-estar de quem trabalha ou estuda na UFSC, não havia sido sequer iniciado até aquela data. Na minha ingenuidade, supus que o questionamento fosse pertinente, tendo em vista o fato de que dizia diretamente respeito à vida de quase 20 mil almas, inclusive crianças, idosos e pacientes em tratamento continuado.

Qual o quê! Conselheiros estudantes me repreenderam pela minha manifestação. De acordo com eles, eu estava fazendo exatamente o que havia criticado na conduta do discente que falara por quinze minutos. Tive que lembrar meus censores de que havia algumas quase imperceptíveis diferenças entre a minha ação e a do discente que me precedera: eu sou membro do Conselho, ele não; eu pedi autorização da presidência para tomar a palavra, ele não; eu disciplinadamente esperei a seção de informes, ele não; eu tratei de assunto que afeta dramática e imediatamente todos os trabalhadores do quadro efetivo da UFSC, ele não; eu me pronunciei por no máximo dois minutos, ele por quinze.

Não é incrível que adultos da espécie em processo de formação acadêmica nesta universidade não compreendam a distinção entre uma exuberante agressão às normas da instituição e um ato completamente previsto por essas mesmas regras, que, de resto, atende ao interesse público? Não é incrível que o reitor permaneça em silêncio diante de tamanho disparate?  Que conceito de democracia estará se firmando na UFSC, no seio do qual se torna plausível que práticas formalmente reguladas sejam igualadas ou mesmo se subordinem a um assembleísmo em que quem grita mais alto leva? Onde diabos as pessoas estão com a cabeça para achar que uma “intervenção” é legítima? Como essas mesmas pessoas pretendem diferenciar uma intervenção estudantil de uma intervenção militar, caso esta sobrevenha um dia? Como continuar achando que a maluquice em que estamos nos metendo há bom tempo na UFSC tem como acabar bem?

Quase ia me esquecendo de dizer: entre as críticas que recebi de estudantes que sucessivamente se manifestaram para tentar me inibir em meu pedido de explicações sobre a Unimed, houve o caso de um rapaz que repisou a ladainha de que ajo como ajo “em nome de pretensões políticas”. Deve ser a octogésima quarta vez que alguém diz isso sobre mim.

Vou repetir aqui o que já falei em tantas situações:  tenho espelho em casa, e faço bom uso dele. Conheço meus muitos limites, e sei muito bem que não tenho a menor condição de ser reitor. Jamais me candidataria a esse cargo. Aliás, quem dera os atuais ocupantes do Gabinete da Reitoria tivessem a mesma autoconsciência. Seríamos poupados do desastre a que estamos assistindo.

É incrível que a crítica na universidade seja tratada desse jeito. Essa turma deveria é me agradecer por eu ser complacente. Em vista de tantos absurdos perpetrados por uma equipe extremamente despreparada, eu acho mesmo que pego muito leve. Minha modesta opinião: a universidade está sendo destruída pela irresponsabilidade e a incompetência que grassam atualmente na Reitoria. E não vou me calar diante disso.

Talvez porque, como é próprio de uma certa esquerda brasileira, o grupo que hoje está no poder na UFSC se julgue moralmente intocável, não lhes entre na cachola que um reles mortal possa apontar seus inúmeros erros. Mas o mais provável é que essa arrogância despropositada se combine com outra coisa: a total incompreensão do que seja a universidade e a docência. Eles simplesmente não conseguem entender que alguém como eu, com trinta anos de dedicação a esta Casa, possa se insurgir contra o que está acontecendo apenas e tão somente porque encara a sua profissão e a instituição como coisas absolutamente sagradas e não se conforme com o fato de elas estarem sendo profanadas desse jeito por neófitos, deslumbrados, interventores, oportunistas, ignorantes, carreiristas, cabos, soldados.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 11h57 do dia 11 de dezembro de 2024 e publicado às 14h36 do dia 11 de dezembro de 2024