O quão diverso é a “diversidade”?

Um certo burburinho tem passado despercebido e envolve uma mostra de curtas sobre a temática da “diversidade” (4a Mostra de Cinema da MTC) que estava programada para ocorrer  na escola Maria Tomázia Coelho na semana passada. A mostra foi suspensa pelo questionamento do pai de uma aluna que se sentiu incomodado com o conteúdo do material que seria exibido e então questionou  a diretora da escola sobre a legalidade da mostra que, segundo ele, envolve claramente temas envolvendo sexualidade. Ao meu ver um tema que cabe aos pais debaterem com seus filhos, baseado em seus princípios morais, éticos e também religiosos.” O cerne do questionamento traz a tona a importância de se conseguir um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão e as convicções individuais das pessoas.

Questões de sexualidade e gênero têm forçado de forma ostensiva um lugar nos currículos escolares onde seus proponentes defendem  o direito de educar precocemente crianças e adolescentes nessas questões. Mesmo tendo sido retirado a menção ao gênero nos documentos das diretrizes curriculares a nível nacional, ainda assim vemos a profusão de material didático e de atividades  escolares com conteúdos que muitos pais consideram ofensivo e/ou inapropriado. Assim, o que pode parecer normal para um educador  “progressista” não é compartilhado por alguém tido por “conservador”. Tem-se criado então uma polarização. De um lado, há os  que defendem que essas questões devem ser tratadas apenas pelos pais e mães e não pela escola, já que tangenciam valores morais e religiosos que são modelados no seio familiar. Dizem ainda que a escola não tem autonomia para invadir um assunto que está na base da estrutura da família. Do outro lado, vemos educadores e indivíduos que audaciosamente declaram que a família não detém um poder ilimitado na educação de suas crianças, o que subliminarmente acentua apenas um caráter totalitário da Escola Pública que pode se tornar instrumento de doutrinação a serviço de certos setores da sociedade. Como pensar uma solução para essa polarização que tente pelo menos escutar o que cada lado pensa sobre o tema?

Devemos  reconhecer que ao tratar questões da sexualidade e do gênero não há uma única perspectiva sobre o tema. Basta ver, por exemplo, o livro “Educação Sexual na Sala de Aula” cuja autora Jimena Furlani é tida como uma autoridade na área. Este livro elenca oito abordagens para a educação sexual, sendo três delas de caráter mais conservador que a autora nomeia como sendo a abordagem “moral-tradicional”, a “terapêutica”, e  a “religiosa-radical”. A descrição que a autora faz dessas abordagens deixa a impressão de que se trata de algo negativo, arcaico, preconceituoso  e fora de sintonia com os tempos modernos. A autora menciona também a abordagem “biológica-higienista” até então prevalente nas ações educacionais e que é criticada  questionando “se o cuidado com a manutenção da saúde não está sendo feito de modo a rodear  o exercício da sexualidade  de uma aura de perigo e doença.” As quatro abordagens restantes, que parecem agradar mais a autora, são nomeadas como sendo a abordagem dos “direitos-humanos”, dos “direitos sexuais”, “emancipatória”, e, por fim, a abordagem “queer”. Indiscutivelmente, é um fato que os argumentos da autora criticando ou positivando certas abordagens não se fundamentam em evidências “experimentalmente” embasadas no sentido de que há um fato indiscutivelmente claro que se aplica a todos e que, portanto, adquire um caráter eficaz [1]. Assim, do ponto de vista da eficácia é difícil crer que um aluno de formação cristã possa valorar de forma positiva abordagens que relativizam os valores cristãos sobre a sexualidade. Ora, mas havendo uma abordagem cristã e sendo a escola um ambiente plural não deveríamos contemplar os mais variados aspectos sobre o tema?

Sem entrar no âmago do que a autora desenvolve em relação ao assunto da sexualidade e do gênero nas escolas, afinal, que me pareceu mais a expressão de algo em conformidade com seus gostos pessoais do que com fatos cuja eficácia são experimentalmente comprovados, procurei no parágrafo anterior indicar brevemente que há uma variedade de perspectivas sobre o tema e que cada perspectiva tem um público alvo. Assim, problemas como o que ocorreu na escola Maria Tomázia Coelho decorrem em parte da incapacidade de se reconhecer que outras perspectivas sobre o tema são igualmente válidas. Será que os organizadores da mostra tiveram interesse em desenvolver todas as perspectivas, ou contemplaram apenas aquelas que são do seu interesse? E, reciprocamente, se a mostra contemplasse também uma perspectiva tradicional sobre a sexualidade, será que o pai que questionou a exibição se sentiria menos inconformado a ponto de questionar a legalidade da mostra?

É preciso mais racionalidade ao se tratar a questão. Em nossas universidades de hoje, influenciadas pelas mais variadas tendências da nossa época, a sexualidade e gênero são assuntos de interesse acadêmico por parte de alguns. Tenhamos em mente, contudo, dois princípios que servem para legitimar e situar a validade de ideias e conceitos no âmbito acadêmico que identifico como:  (i) É apenas o caráter plural implícito no seu próprio nome que faz com que a universidade abrigue ideias, sem, necessariamente, endossar a validade ou correção de nenhuma delas, salvo as que tenham comprovação experimental. (ii) Mesmo ideias que se mostrem experimentalmente verificadas só devem ser aplicadas fora do domínio acadêmico se forem de interesse público.  Considerando estes dois  últimos pontos como princípios gerais é válido então que tenhamos pessoas estudando sexualidade e gênero, independentemente do valor que essas ideias tenham ou do que signifiquem em termos práticos. Enquanto estiverem restritas ao domínio acadêmico são tão válidas quanto as construções de um físico teórico que formula modelos com extra-dimensões sem qualquer comprovação experimental, ou as de um matemático puro que constrói teorias a partir de axiomas também sem qualquer compromisso com algo real ou experimentável. O problema surge quando estudiosos da sexualidade e do gênero esquecem o princípio (i) e extrapolam suas ideias além do domínio acadêmico usando sua condição de estudiosos como se isso fosse suficiente para legitimar a razoabilidade de suas ideias ao público de fora. Além disso, violando o princípio (ii), o simples fato de termos  múltiplas perspectivas sobre sexualidade e gênero não exclui nenhuma delas a priori, assim, o que se mostra de interesse público não se limita apenas as perspectivas que sejam agradáveis a um “main stream” dominante que decide o que é relevante de acordo com seus gostos pessoais. O que temos visto, infelizmente, é que uma perspectiva cristã sobre sexualidade ou gênero é descartada pelos ditos “experts” da área sob as mais injustas acusações de que fomenta o preconceito contra homossexuais. Mas, onde está o preconceito em um cristão não valorar positivamente para si o ato homossexual? Afinal, parece improvável que um homossexual realmente convicto e que se afirme realizado em sua opção sexual seja afetado pela visão negativa que o cristianismo dá ao ato homossexual, exceto se necessitar do apoio de terceiros para afirmar para si mesmo algo que ele/ela não está tão convicto quanto pensa estar.

A atitude determinada do pai que se sentiu incomodado com a mostra de curtas com temática da diversidade na escola Maria Tomázia Coelho indica que estamos longe de um consenso. Dada a insistência de alguns professores em expor uma visão particular do tema resta aos pais e mães, principalmente cristãos, instruírem seus filhos e filhas para que eles refutem publicamente em sala de aula qualquer  argumentação de professores que de algum modo invada as convicções religiosas de seus filhos, apresentando argumentos sólidos e bem embasados, afinal, o Estado laico garante tanto a não interferência da religião no Estado quanto a não interferência do Estado nas convicções religiosas do indivíduo. A seletividade com que alguns professores tratam o tema deixa claro que esta interferência estatal já está ocorrendo. Chegou então o momento dos pais e mães de alunos darem um basta a isso. Foi o que o pai da aluna fez.


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática

Nota:

 [1] Sobre a eficácia de uma idéia eu uso a seguinte analogia. Um médico que recomenda que não se deve fumar produz um diagnóstico eficaz pelo conhecimento experimental que ele tem dos efeitos nocivos do tabaco na saúde. O mesmo não se pode afirmar quanto a eficácia geral de se adotar uma das quatro abordagens da educação sexual que a autora parece ter mais preferência. Assim, o que pode valer para um indivíduo em relação a uma abordagem sexual pode se mostrar desastroso para outro.