A hora chega

Para todos aqueles (cada vez mais escassos) que ainda amam a leitura

Para Clarice (minha filha) e Tomás – que sejam iluminados em praga, na terra de Fanz Kafka

“Último antídoto do nada/entre as peçonhas da vida/coisa por sorte encontrada/e por desgraça perdida,/amor lega, em sua ausência,/um lembrete à consciência/se ela por acaso esqueceu:

nada que te pertence é teu”(…)

“Uma vida inteira passada/dentro dos confins de um corpo/junto ao qual vem atrelada/ a consciência, peso morto/que acusa o golpe sofrido/e cochicha ao pé do ouvido/depois que o fato se deu: nada que te pertence é teu”.

(Paulo Henriques Britto ¬ “Nenhum Mistério”

Sim. Sempre chega a Hora.

Quando, cedo, fazes a barba,, colocando a gravata, no trânsito caótico de todos os dias e, sem aviso, o enfarte fulminante. Para os grandes, para os pequenos.

Ou em um câncer longo – tão dolorido.

Tomas um cafezinho no bar do aeroporto e, claro, não sabes que o avião irá cair.

Explosão , sempre o fogo, a fumaça, todos mortos, lágrimas.

E o tempo passa, tudo é esquecido – não para as famílias.

Quando a parteira te tira da barriga da mãe, começa “o ser para a morte”.

Não há truques, arranjos. É isso.

E exatamente neste momento, neste dia que nasce, após  a madrugada  inteiramente insone – a “cabeça viajando” para mil mundos ( e não temos o controle de nada–nada), um pássaro canta na árvore em frente Eu sei: há mar, mãe, pai, companheira, pão quente, amora, pitanga.

Vale a vida.

E, apesar de tudo, é um  novo dia.

Escrevi: “e não temos o controle de nada-nada”. E pensamos que temos. Nem das nossas vidas e, é claro, nem da dos outros”.

(E  Caronte, o Barqueiro, carrega as almas dos  recém-mortos.

É o seu ofício.

Ele coloca uma moeda sobre a boca dos cadáveres.

Jovem, eu pensava que fossem duas moedas nos olhos. Mitologias diferentes?

E segue o rio.)

Eu sei: não só isso.

Nada de queixas ou autopiedade: ¬ lembro-me do Evangelho de São Lucas (Capítulo 12, Versículo 48):  (…) “Porque a quem muito foi dado, muito será cobrado. Quanto mais se confiar a alguém, dele há mais se há de exigir”.

Também me recordo de Soren Kierkegaard (1813-1855), o grande filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês, considerado  o primeiro filósofo existencialista  (e que, junto com Albert Camus, tanto  influenciou minha geração.).

Não, não citarei nada de complexo do profundo pensador – apenas: “Amor é o que tem sabor de eternidade”.

Tão simples – tão verdadeiro.

A hora chega!

Mas, nesse trânsito, é possível fazer algo. A obra fica.

Charles Aznavour (1924-2018) tinha uma canção (“Hier Encore”) que dizia: “Ainda ontem tinha 20 anos, acariciava o tempo, joguei com a vida como se joga com o amor.”

 


Emanuel Medeiros Viera

Escritor