Ciência e obscurantismo

O oriente foi, por muitos séculos, fonte inquestionável de descobertas e conhecimento. Os árabes nos deram os algarismos arábicos, a alquimia, os primeiros passos na medicina. Quem leu O Físico, brilhante livro de Noah Gordon (ou viu o filme), pode acompanhar a saga de Rob Cole da Inglaterra até a Pérsia numa perseguição incansável atrás de conhecimento médico. Quando criança, a maioria de nós se deparou com os incríveis contos de As Mil e Uma Noites. Lembro-me de ter ficado completamente estupefata ao descobrir, numa aula de geografia, quando eu tinha por volta de 15 anos, que a Pérsia tinha se tornado o Irã, terra dos famosos Aiatolás e da constrição da liberdade feminina. Mais tarde, fiquei sabendo que parte da derrocada científica que se deu na Pérsia (Irã), deveu-se a Al-Ghazali, um influente teólogo que questionou a lógica da filosofia ocidental platônica e escreveu livros como The Revival of Religious Science, usado posteriormente para abrir espaço para as crenças religiosas em detrimento dos avanços científicos.

Ainda no oriente, lembremos da milenar e potente cultura chinesa. Como, com base tão sólida, os chineses demoraram tanto tempo para conquistar o mundo?  (Alguém tem dúvida de que isso está ocorrendo agora?) Pois bem, no início do século XV, o imperador Zhu Di, da dinastia Ming, dentre várias façanhas monumentais, construiu a Cidade Proibida, em Pequin, onde foi instalado um novo observatório astronômico e montado um acervo bibliográfico impressionante para a época, com ênfase na compilação e preservação de uma enciclopédia de mais de 4.000 volumes.

Além disso, Zhu Di mandou reforçar e reconstruir partes da Grande Muralha e enviou uma armada, conhecida como Frota do Tesouro, composta por enormes juncos e comandada pelos renomados almirantes eunucos para sete viagens em direção à Índia e Arábia.

Dentre os almirantes, havia Zheng He, o fundador de uma escola de idiomas que preparava intérpretes. O objetivo das viagens era desbravar o Oceano Índico e expandir a influência chinesa.  Em 1424, Zhu Di faleceu e subiu ao trono o seu filho Zhu Gaozhi, muito religioso e seguidor do confucionismo. Zhu Gaozhi permaneceu no trono por apenas um ano, quando faleceu e foi sucedido por seu filho Zhu Zhanji, ainda mais conservador do que o pai.  Em 1429 foi realizada a última das 7 viagens programadas, depois da qual, frente a crescente ameaça mongol e aos elevados custos das viagens, a China se voltou para si mesma por vários séculos. Zhu Zhanji permaneceu no poder por 10 anos e seu sucessor proibiu o comércio e todas as viagens ao exterior, exacerbando a já presente xenofobia. Também na China, imperadores voltados para si mesmos e sustentados por ideais religiosos, dificultaram o importante avanço científico e do conhecimento náutico.

No ocidente, as tentativas de frear a divulgação da ciência são mais conhecidas e retratam uma fase negra do catolicismo. Elas vão de Copérnico, o primeiro cientista a propor o heliocentrismo até Galileu Galilei e Giordano Bruno, ambos defensores dessa ideia e perseguidos pela Inquisição da igreja católica. Enquanto Galileu, com uma atuação importantíssima para o estabelecimento do método científico, teve alguns de seus livros e manuscritos proibidos pela Inquisição, Giordano Bruno foi condenado à morte e queimado vivo, acusado de heresia. 

A história de Darwin também retrata uma briga interna pessoal entre a sua crença religiosa e as descobertas que fazia enquanto compunha as bases da teoria de evolução.

A fé e as crenças religiosas acompanham o ser humano, provavelmente, desde que ele se deu conta de que a morte era inevitável. Conviver com essa realidade fica infinitamente mais fácil com a crença num Deus que ajuda a lidar com as dificuldades da vida e assegura uma vida após a morte que pode ser melhor do que a vida terrena.

Por outro lado, teorias científicas muito defendidas hoje, como a teoria do Big Bang, o modelo padrão das partículas elementares e até a teoria da evolução das espécies não são verdades absolutamente concluídas. A maior das qualidades do método científico é que ele exige a comprovação constante dos novos conhecimentos e, quando se atinge um patamar insustentável, algo novo precisa ser proposto. Foi exatamente assim que surgiram a mecânica quântica e a relatividade. No entanto, no seu domínio de validade, a física Newtoniana continua válida. Muitas das teorias são, então, paradigmas que sustentam a procura pelo conhecimento de forma dinâmica e auditável. Em detrimento de possíveis percalços impingidos pelas crenças religiosas, a ciência sempre avança. E o ser humano usufrui dela todos os momentos, desde o uso corriqueiro e diário de smartphones, a partir dos quais são solicitados serviços de deslocamento (Uber, Waze) baseados no sistema GPS (global positioning system), inclusive pelos “seres iluminados” que defendem a terra plana, até exames médicos sofisticados como PET-scan e ressonância magnética. 

A fé e a ciência vão seguir coexistindo e a ciência vai seguir avançando, mesmo havendo épocas de obscurantismo, como as citadas acima, tanto no oriente quanto no ocidente. Isso é o que nos ensina a história, que também pode nos ajudar a não repetir erros, da mesma forma que a metodologia científica nos ensina a não redescobrir a roda. Que o Brasil não tenha que passar por uma dessas épocas de obscurantismo para avançar. Porque ele vai avançar!

 


Débora Peres Menezes

Professora do Departamento de Física da UFSC