(Discurso de Paraninfo na formatura do Curso de Ciências Sociais )
Jacques Mick
Neste mesmo palco, 16 meses atrás, a comunidade universitária se despedia do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Seu desaparecimento se fixou em minha memóriad+ ele nos lega um espectro e uma lição. Quero falar disso nesta noite – e também de uma angústia e de uma esperança.
Não há como descrever a honra que sinto por estar aqui, nesta posição tão simbólica. Muito obrigado. Nas últimas semanas, enquanto escolhia algo a dizer à altura da condição de paraninfo, pensei muito em vocês e na angústia que estão sentindo. Vocês se perguntam a todo o momento: o que vou fazer da minha vida, com esse diploma de Ciências Sociais, justo agora? Não bastassem o desemprego e as consequências da reforma trabalhista, o anti-intelectualismo, o elitismo, o atraso, o autoritarismo e o neoliberalismo se juntaram para combater qualquer fagulha de reflexão crítica. Acontecimentos e argumentos são rechaçadosd+ a história do pensamento é deformada como “marxismo cultural”d+ negar o aquecimento global e a redondeza da Terra se somam a inúmeros absurdos que encontramos um jeito de tolerar ou de fazer que não ouvimos.
Para quem pensa, para quem sente, o Brasil se tornou minúsculo, na transição da esperança ao ódio. É compreensível que vocês se sintam angustiados.
Mas essa angústia tem uma história, e ela se conecta ao espectro evocado pela lembrança de Cancellier. Vocês se lembram: o reitor, junto com mais docentes desta universidade, teve sua reputação destruída quando Ministério Público e Polícia Federal fizeram uma dessas operações espetaculosas, sempre muito bem sucedidas em humilhar os alvos antes de qualquer julgamento. O reitor foi preso e apresentado pela imprensa como responsável último por desvios supostamente milionários. A cobertura jornalística repercutiu, de modo absolutamente acrítico, o que afirmaram autoridades judiciais. Milhares de juízes de Facebook usaram aquelas expressões abjetas, hoje cada vez mais costumeiras, para se referirem ao reitor, aos professores, aos estudantes – para condenarem vulgarmente o trabalho que faz desta universidade uma das melhores do Brasil e da América Latina. Um ano e meio depois de gastarem milhões de reais numa investigação que se revelou inócua, nenhuma desculpa, nenhuma justificativa, nenhuma retratação – mas um cadáver é incontornável.
Exigir autocrítica do adversário, enquanto escamoteia sua própria responsabilidade na deterioração das relações sociais e políticas virou um jogo ordinário num país de instituições esfaceladas. Daí a lição que o desaparecimento do reitor nos reforça: nos últimos anos, nós nos acostumamos a naturalizar o inaceitável – e é isso, no fim, o que há de mais intolerável. A vida aqui tornou tamanha a sucessão de violências que nos habituamos a contornar a dor e a indignação. Num só dia, 300 pessoas são enterradas vivas num mar de lama. No outro, um policial espanca e chicoteia as costas de uma mulher ajoelhada, durante trinta minutos. Num só mês, 109 mulheres são mortas pelos próprios cônjuges. Num só ano, 60 mil brasileiros, a maioria deles jovens negros, são vítimas de homicídio. Nossa guerra civil não declarada produz cadáveres todo dia: na lama, na enchente, no fogo, na bala. E tortura os que permanecem vivos: falta trabalho para 28 milhões de brasileiros e 63 milhões não conseguem pagar suas contas.
Esse país de endividados é também um dos mais desiguais do mundo. Os 20 milhões mais ricos concentram metade da riqueza – a outra metade, portanto, é dividida em pequenas fatias entre 180 milhões de brasileiros. Muitos de nós escolhemos que boleto pagar e que carnê pedalar, mas o lucro dos três maiores bancos privados em 2018 chegou a 57 bilhões de reais – às custas de quem paga os juros mais altos do mundo. A corrupção é abominável, mas é a desigualdade a causa de nossos principais dramas, para infortúnio de pobres, mulheres, negros e em particular mulheres negras.
Essas notas graves e cítricas me levam, enfim, à esperança. Estamos cercados de perguntas incisivas e dolorosas: Como sairemos do buraco em que nos encontramos? Por que a extrema direita, com sua apologia à tortura e sua pauta regressiva, conquistou a hegemonia política? Será possível retornar a patamares razoáveis de confiança interpessoal e institucional, necessários tanto ao desenvolvimento socioeconômico como ao equilíbrio político?
Nem jornalistas, nem políticosd+ nem economistas, nem engenheiros: quem pode formular respostas para essas questões são vocês. A sociologia, a antropologia, a ciência política nos legaram modos únicos de interpretar as relações sociais, indisponíveis em nenhuma outra disciplina. Nos últimos quatro, seis, em alguns casos oito anos, vocês aprenderam a formular perguntas originais e a respondê-las com enquetes, etnografias, pesquisas-ação, entrevistas em profundidade, observação participante, pesquisa documental, revisão bibliográfica, teoria social. Vocês viveram o direito e o privilégio de estudar numa universidade excelente, financiados pelo povo brasileiro. Tiveram comunistas como mestres, é verdade – mas também liberais, republicanos, anarquistas, socialistas, conservadores, libertários, radicais utópicos, pragmáticos, cínicos. Monarquistas, não – a monarquia não tem muito prestígio por aqui.
A caricatura da universidade feita pelo anti-intelectualismo não resiste ao exemplo e à reflexão. Vivemos o triunfo do mesmismo, em que as caricaturas falam mais alto, mas ainda tenho a honesta esperança de que o exemplo e a reflexão poderão nos tirar do caminho das catástrofes. Neste momento limiar em que vocês saem da universidade e ingressam em outros desafios, peço apenas que lembrem do povo. Foi graças a esse povo explorado, mantido inculto desde a pré-história do nosso capitalismo selvagem, povo de mentalidade colonizada pela mídia, por pastores mercenários, por lideranças políticas cínicas, povo controlado pela violência ou anestesiado por essas drogas distribuídas em massa pelo Estado, pelo álcool ou por outras substâncias – foi graças a esse povo que vocês estudaram. Agora vocês terão a chance de retribuir, combinando exemplo e reflexão. Não é possível ter certeza de que argumentos razoáveis e comportamento ético, inteligência crítica e ação responsável, prevalecerão ante a mentira e a ilusão. Às vezes, a lama simplesmente sobrevém e nos resta enfrentar a tragédia, o trauma, o luto. Às vezes, é preciso que uma turma se chame “Marielle Franco”, se forme num centro de eventos “Luiz Carlos Cancellier de Olivo”, para que a gente não esqueça do que é nosso dever: desnaturalizar o inaceitável.
Jaques Mick é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC. Texto publicado com autorização do autor.