Um livro contra mitos

*Por Waldir Rampinelli

Jogar luz na escuridão para espantar os fantasmas que povoam as mentes de tantas gentes no Brasil é o objetivo fundamental do livro As duas faces da moeda – as contribuições de JK e Gilberto Freyre ao colonialismo português, publicado em 2004 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC). Lá se vão vinte anos e ele continua firme, forte, atual; de pé.

Foi o primeiro volume da coleção Relações Internacionais e Estado Nacional (RIEN) que parou por um tempo, voltando agora, sob a coordenação da professora Camila Vidal, com muita potência, publicando o número 4, Estudos sobre o imperialismo, de John A. Hobson. Faz-me um bem muito grande estar na companhia deste senhor que deu subsídios a Lênin para escrever seu Imperialismo, fase superior do capitalismo.

Juscelino Kubitschek na política e Gilberto Freyre na teoria luso-tropicalista apoiaram integralmente o colonialismo lusitano mundo afora, chegando a prejudicar os interesses brasileiros em favor dos portugueses. Razões diversas para isso há, tanto que o livro explica, exibindo documentos. As pesquisas aconteceram no Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino e na Biblioteca Nacional. Todos em Lisboa.

Também vários arquivos brasileiros foram consultados. Para completar, quatro entrevistas significativas clareiam pontos obscuros: Otelo Saraiva de Carvalho, um dos capitães de Abril; Fernando Rosas, historiador e candidato pelo Bloco de Esquerda à presidência de Portugal; José Calvet Magalhães, o decano dos diplomatas lusitanos à época; e Jacob Gorender, ator importante do Partidão nos tempos de JK.

O governo de JK apoiou a posição portuguesa dentro da ONU, principalmente na Quarta Comissão, onde se travava o debate referente à colonização, chegando o nosso representante – Donatello Grieco – a afirmar taxativamente que “tocar em Portugal era tocar no Brasil”. E endossava a tese de Salazar de que o país não possuía colônias, mas províncias ultramarinas.

O delegado indiano nas Nações Unidas – R. Jaipal –, depois de escutar a defesa do diplomata Grieco proclamando a missão civilizadora de Portugal no além-mar, disse que “nunca ouvira uma exposição mais fiel ao ponto de vista português do que aquela que acabara de fazer o representante do Brasil”.

Por sua vez, Gilberto Freyre, com seus escritos sobre a colonização, a mestiçagem e a reciprocidade cultural nos trópicos, também contribui para estreitar as relações entre Brasil e Portugal. No aspecto teórico-científico, ajuda o regime salazarista a manter a dominação ultramarina. “Não fossem os seus livros e a nova concepção que eles me deram de ‘cultura portuguesa’ ou ‘cultura tropical’ – diz um luso-indiano a Freyre – e eu seria hoje o mais feroz dos separatistas, dos antilusitanos e dos nacionalistas pró União Indiana”.

Casa grande & senzala e O mundo que o português criou são as obras fundadoras da concepção luso-tropicalista, embora nelas ainda não utilize o termo e tampouco defina o conceito. O primeiro trabalho foi publicado em 1933, coincidindo com a entrada em vigor da Constituição do Estado Novo, em Portugal, e o segundo em 1940, com a Exposição do Mundo Português. Já O luso e o trópico, em que tal doutrina surge em sua forma mais acabada, aparece em 1961, quando começa a guerra colonial, se dá a perda da Índia portuguesa e se abole o Estatuto dos Indígenas.

As duas faces da moeda mereceu várias resenhas, entre elas a do filósofo Roberto Romano afirmando que “em páginas muito bem documentadas, o autor evidencia os males do colonialismo e como a política externa brasileira deu alento a um doente terminal, morto em abjeção merecida [refere-se a António de Oliveira Salazar]. E conclui: “Sejamos gratos a pessoas como Rampinelli que não temem desvendar os ‘segredos’ apodrecidos de nossa (falsa) consciência nacional.”

Já o historiador Luiz Felipe de Alencastro, em artigo no jornal O Estado de São Paulo, comenta que “um livro bem documentado de Waldir J. Rampinelli, da Universidade Federal de Santa Catarina, demonstra como JK promoveu, na ONU e alhures, o colonialismo obtuso e sangrento do ditador Salazar na África e na Ásia. Ignorado, o episódio demonstra incoerência e a irrelevância da diplomacia no debate político brasileiro.”

A professora Maria de Fátima Fontes Piazza diz que As duas faces da moeda “deverá tornar-se uma leitura obrigatória para o público fora dos muros da universidade, o que demonstra a importância das editoras universitárias para a divulgação da produção acadêmica”.

Por fim, o sociólogo Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida diz no prefácio que “o ponto alto deste livro consiste justamente em recuperar a tessitura dessas relações internas e externas à sociedade brasileira, abordando, com uma linguagem clara e agradável, as múltiplas determinações de um importante aspecto da política externa e internacional implementada pelo governo Kubitschek. Esta análise, que só foi possível graças ao talento de historiador, cientista social e estudioso das relações internacionais, torna o livro indispensável aos que procuram estudar uma importante faceta da Guerra Fria, bem como apreender questões atualíssimas acerca do pensamento social brasileiro”.

As duas faces da moeda – as contribuições de JK e Gilberto Freyre ao colonialismo português expõe a história oficial contemporânea à luz de novas verdades. Você pode adquiri-lo na livraria da Editora da UFSC no Centro de Eventos do campus Florianópolis.

*Waldir Rampinelli é professor aposentado do departamento de História da UFSC e ex-diretor da EdUFSC