Por um pacto em nome da UFSC

*Por Fábio Lopes

Em conversa recente, um alto membro do staff da Reitoria tentava me convencer de que os problemas e limites da atual gestão da UFSC decorrem da maneira como o reitor é escolhido. Segundo ele, os acordos políticos que viabilizam a chegada de alguém à condição de dirigente máximo da instituição acabam por cercear dramaticamente o exercício do poder. 

Ora, a tese não é inteiramente falsa, mas fica muito longe de ser totalmente verdadeira. Meu interlocutor faria muito melhor se invocasse não apenas o processo eleitoral mas sobretudo o instituto da reeleição e, principalmente, a ambição do Prof. Irineu de se reeleger a qualquer preço. Ainda assim, muitas das encrencas em que a Reitoria corriqueiramente nos tem metido continuariam sem ser exaustivamente explicadas. 

Considerem, para começar, a qualidade sofrível de boa parte da equipe de pró-reitores, secretários e afins. Eu já perdi as contas da quantidade de ocasiões em que ouvi barbaridades proferidas por eles, sem que nem ao menos corassem de vergonha. Inúmeras também foram as vezes em que testemunhei barbeiragens atrozes perpetradas por essas pessoas. Custo a acreditar que o contribuinte seja obrigado a financiar tanta imaturidade, despreparo, descompromisso, ignorância e/ou incapacidade técnica (um pró-reitor, não sei se vocês sabem, ganha gratificação de quase dez mil reais). É sério: eu poderia escrever uma obra em seis tomos só com o besteirol que tive que engolir em reuniões ou simplesmente observando a conduta daqueles que deveriam ser os melhores entre nós. Se o que está em jogo não fosse o futuro da universidade à qual dediquei os últimos trinta anos de minha vida profissional, eu estaria me dobrando de rir ao me lembrar desse interminável anedotário. 

Querem um exemplo lapidar do que um diretor de centro tem que suportar quase diariamente na relação com a Reitoria? 

Há alguns meses, lidei com um caso de tentativa de suicídio. O episódio, graças a Deus, terminou bem. De minha parte, a fim de me preparar para eventuais ocorrências semelhantes no futuro, escrevi à pró-reitora responsável por esse tipo de situação pedindo que ela me enviasse o protocolo da UFSC para atendimento de potenciais suicidas. Sabem o que recebi em resposta? Um documento do SUS que orienta profissionais de saúde a reconhecer pacientes com propensão a tirar a própria vida…

Fiquei olhando incrédulo para aquele arquivo. Minha vontade foi replicar à colega: Sprache Sie Deutsch? (desnecessário acrescentar que o protocolo que eu desejava não existe).

A cereja no bolo nessa tragicomédia era a capa do tal manual do SUS. Ela trazia uma reprodução de um famoso quadro de Louis David em que um dos líderes da Revolução Francesa aparece morto em uma banheira, com uma carta sobre o peito. So far, so good. Pena que, como é bem conhecido, o título da obra seja O assassinato de Marat. Ou seja: tirando o fato de que, em face de assunto tão grave, a pró-reitora me remetera algo completamente diferente do que eu pedi e que, de resto, Marat não se matou, nada a reclamar.

Moral da história: não é possível que, entre os apoiadores do Prof. Irineu, não haja quadros mais aptos do que esses que estão aí. Não é possível que não se encontre alguém que não se orgulhe de ter reduzido de cinco para três dias o período semanal de teletrabalho ou que, em dois anos, não tenha viajado dezoito vezes com dinheiro público e, ainda por cima, ostente o resultado dessa farra em suas redes sociais.    

É óbvio que acordos políticos e mesmo a venda da alma ao Diabo em nome da reeleição não são os únicos fatores a produzir o caos que hoje reina em boa parte das pró-reitorias e secretarias. Há um caroço a mais nesse angu, e não é difícil concluir que se trata dos limites pessoais do reitor. Se, mesmo diante de tantas demonstrações de incompetência, ele não demite ninguém ou muda certos procedimentos obviamente errados, é por escolha própria ou omissão, não por falta de alternativa.

Em matéria de destruição voluntária e consentida da instituição, a mais nova criação da Reitoria foi publicada na tarde da última sexta-feira. Trata-se do ato que prorroga por mais seis longos meses o so-called projeto-piloto de teletrabalho, em que pese o fato de, tal como foi instalado, este represente a oficialização da baderna na UFSC. O que mais precisa acontecer para convencer o reitor do mal que sua deliberação causa à universidade? 

Em uma cena clássica do filme La Historia Oficial, um velho anarquista está almoçando com a família. Dirigindo-se a seu primogênito – alto funcionário em uma multinacional –, ele comenta: “Na Argentina hoje, estão todos jodidos, salvo os hijos de puta  e meu filho mais velho, e eu queria entender por quê.”

Pois bem: eu daria meu reino para, por um momento, ser um velho anarquista que, sentado à mesa com o reitor, lhe perguntasse: “Em qualquer lugar do Via Láctea, projetos-pilotos são ações com prazo limitado que, além disso, necessariamente se aplicam a apenas uma pequena amostra de membros de uma população ou corporação. Eu queria entender por que só a UFSC formula projetos-piloto que duram para sempre e abrangem a quase totalidade do quadro de trabalhadores?”

Não venham me dizer que tamanho disparate é consequência de acordos eleitorais complicados. Sim, é certo que o reitor jamais teria sido eleito sem o apoio maciço dos TAEs. É igualmente certo que essas pessoas esperavam que o reitor as contemplasse. Mas daí a pisotear dessa maneira o conceito de projeto-piloto o caminho é longo. Isto é uma universidade, não um botequim. E o reitor, por sua vez, é doutor em administração pública, não o dono da venda. Ele até tem o direito de rasgar o próprio diploma – mas não de fazê-lo enquanto ocupa o mais alto posto na gestão universitária.

A fidelidade a acordos eleitorais explica muitas coisas. Mas essa lista definitivamente não inclui a manutenção de uma experiência que contraria um conceito básico da área de formação do reitor e se revela notadamente ruinosa para a instituição. 

E por falar em lealdade política, é curioso que justamente aquele que se diz o protetor dos TAEs os trate como imbecis. Acaso os técnicos-administrativos são incapazes de compreender que o teletrabalho é, sim, possível mas não de modo indiscriminado e não sem contrapartidas como a instalação de secretarias integradas? Acaso é impossível reunir-se com eles e construir uma proposta que, em nome do bem comum e do interesse público, relativize os interesses da corporação? Claro que não. E mesmo que eles não passassem de oportunistas exclusivamente abraçados a benefícios pessoais – o que obviamente não é o caso –, caberia ao reitor traçar uma linha no chão e dizer: “Esse é meu limite de negociação. Se não querem isso, votem em outro nas próximas eleições.”

Chamem o que está acontecendo de covardia, miséria intelectual, opção preferencial pelo caminho mais cômodo, ambição cega ou falta de projeto, mas não de acordo eleitoral, por favor.

A UFSC está vivendo uma crise de proporções bíblicas. É evidente que forças externas muito acima de nossa capacidade atual de intervenção estão entre as causas dessa condição. Mas nem por isso devemos assistir calados à derrocada da instituição. 

A universidade precisa de um pacto que comece pela formação de uma equipe com the best and the brightest nos cargos de primeiro escalão. Gente que esteja realmente preparada para exercer as funções e que as encare como um dever sagrado, um sacerdócio. Gente com coragem suficiente para proceder às mudanças pelas quais a universidade precisa passar. Gente que não esteja de olho em reeleição ou remuneração e que não se prostre diante de debates ideológicos bizantinos.

Gente capaz, por exemplo, de reunir-se com o TAEs e formatar com eles, de maneira franca e civilizada, um projeto de teletrabalho que coloque a instituição em primeiro lugar. Gente capaz de dizer aos docentes que os processos de progressão funcional precisam ser muito mais rigorosos do que os atuais; que os pós-doutorados e licenças-capacitação têm que se dirigir a instituições realmente qualificadas do ponto de vista acadêmico e trazer resultados palpáveis para a UFSC (artigos internacionais, projetos de cooperação, etc.). Gente capaz de comandar uma reestruturação dos cursos de modo a modernizar aquelas formações que pararam no tempo e hoje minguam sob o peso da baixa procura e da evasão. Gente capaz de impor coisas tão óbvias mas nem sempre seguidas, como a obrigação de os professores estarem presencialmente em todas as aulas programadas.       

Do contrário, como os argentinos do filme, estamos jodidos.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC