Especialista critica falta de base técnica em discurso de Bolsonaro e politização do debate sobre medidas contra coronavírus
O médico Julio Croda acompanhou de dentro do Ministério da Saúde a escalada da disputa com o presidente Jair Bolsonaro até que, no fim de março, decidiu deixar o governo. “Não quis ser responsável por essa recomendação equivocada contra o isolamento social e por um número importante de óbitos”, afirmou ao Estado o ex-diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Infectologista, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Croda avalia que a troca de ministro será o desfecho de um enredo de derrota no combate ao coronavírus.
“Se a gente já tinha dificuldade com ministério mais técnico, perdemos essa capacidade (com a troca).” Para ele, o País apresentava bons índices de isolamento, mas a média caiu para abaixo de 50%. Croda aponta como fatores para a queda desses índices o crescimento de discurso anti-isolamento, capitaneado por Bolsonaro, somado à falsa sensação de que “o pior já passou”.
Confira um trecho da entrevista ao Estadão:
Por que o senhor decidiu sair do ministério?
Justamente por essa questão do isolamento social. O que realmente funciona é isolamento social, testagem em massa e leito de UTI. Importante existir um discurso unificado e não politizar o debate. Essa medida é a mais efetiva para ter capacidade de resposta à epidemia. Se me perguntar hoje: o isolamento no Brasil salvou vidas? Salvou muitas vidas. Não quis ser responsável por essa recomendação, equivocada, contra o isolamento. E responsável por um número de óbitos importantes. A gente sabe que, se não tiver isolamento, vai aumentar o número de casos. Vai superar nossa capacidade. Principalmente de atendimento na população mais pobre. Não tem nada a ver com ministro, ele apoia essa medidas de isolamento. Mas existe um ruído entre o que o ministério fala e o que o presidente fala. Eu antecipei. Seria muito difícil manter o isolamento no Brasil com discursos que não sejam técnicos e unificados.
Qual o cenário da doença no Brasil? E para onde caminhamos com medidas já tomadas?
A gente está num processo importante de isolamento. Existe apoio da população, a gente vê pelas pesquisas. Chegou a índices aceitáveis em muitas cidades. Entendo que houve redução nas últimas semanas, principalmente por notícias não baseadas em evidências científicas, questionando o isolamento. Gera mais desinformação do que ajuda. Ao fim da semana de 22 de março chegamos a 60% (de isolamento). Desde este momento o índice vem caindo. Hoje atingimos um dos índices mais baixos no País, 47%, com apenas Pernambuco acima de 50%. Esse indicador é muito preocupante.
As regiões de menor isolamento são justamente onde há apoio maior ao discurso do presidente Bolsonaro. Isso é claro no mapa. Isso preocupa: como a gente vai lidar no futuro, se a gente vai ter leito ou não. A gente está só no início do processo. Se continuasse como estávamos, não teria pico da doença, a gente iria distribuir casos graves ao longo do tempo. Quando tem isolamento adequado, não tem pico.
Tem questões aí também importantes, que temos de responder num futuro próximo: quando sair do isolamento? Com a dificuldade de testagem no Brasil, muito aquém da necessidade, a gente pode ver que tem número importante de pacientes graves em São Paulo e até óbitos que não foram testados. Quando a gente não tem teste, precisa usar outros parâmetros. A partir desse momento, a gente consegue entender quando interromper o isolamento no País. Provavelmente, será em meses. Mas a gente precisa já começar a monitorar a cada 15 dias, através de inquérito de soro-prevalência rápida, como está a circulação no País do vírus.
O País já deveria ter feito alguma medida de ‘lockdown’ (fechamento total) ou isolamento feito estava adequado?
Isolamento que estava sendo adotado, sem esse ruído das últimas semanas, estava bem adequado. Não seria necessário lockdown se a gente mantivesse índices de semanas atrás.
Agora pode ser que volte para uma transição importante. A gente não sabe se essas mudanças que ocorrerão ou já ocorreram no imaginário popular se solidificaram. E a questão do não isolamento se tornou mais forte. Pode ser que, se essa tendência de queda de isolamento se confirmar, a gente tenha transmissão importante. Superlote serviço de saúde e cidades deverão lançar mão do lockdown, quarentena mais restrita.
Leia a entrevista na íntegra: Estadão