13 anos da Carta Sindical: a inversão da história¹

*Por Armando Lisboa

“Não se constrói o futuro vingando os erros, e sim aprendendo com eles e buscando vida nova” (Sérgio Abranches).

Como aqui temos a Presidente da CUT/SC, permitam-me, primeiramente, me apresentar. Fui delegado sindical no Congresso de fundação da CUT, o CONCLAT ocorrido no inverno de 1983 nos pavilhões do outrora Estúdios Vera Cruz, em São Bernardo. Na ocasião, jovem militante não pertencente a nenhuma cúpula, não fiquei em hotel. Dormi no chão daqueles amplos galpões com milhares de outros operários provindos da base.

Mas, após as falas da mesa em comemoração aos 13 anos da Carta Sindical (CS), solicitei a palavra para trazer algo que não quer calar¹. Esta Carta expressa a independência da Apufsc como sindicato próprio e autônomo. Ora, não estamos independentes há 13, mas há 15 anos. Em 2009, numa grande Assembleia, na época a maior da história do sindicalismo das IFES, deixamos de ser uma seção do Andes. 

Mais. Há 14 anos (em 25.5.2010) obtivemos o Registro Sindical (RS), reconhecimento cartorial de que somos sindicato autônomo, o primeiro no âmbito das IFES. O Proifes, via CUT, controlava o cartório (ou seja, a seção do MTE que analisa e concede os registros). Eles tentaram bloquear esta concessão. A condição para que a obtivéssemos era que nos curvássemos a eles, e jogássemos fora a independência. Até hoje não entenderam como rompemos os diques e alcançamos tal façanha. Outro dia contarei esta história, pois hoje não fui convidado para tal.

A CS é a ratificação final de todo este processo. Sendo um diploma que simboliza o RS, ela nos seria entregue no mês seguinte (junho de 2010), no dia do aniversário de 35 anos da Apufsc, pelas mãos do Ministro do Trabalho, Carlos Lupi. Programamos um ato na Reitoria, seguida de uma tainhada, que foi realizada já na sede nova (no Max Flora), como inauguração da mesma. O almoço ficou sem o prato principal… O prof. Paulo Philippi resgatou um pouco da queda-de-braço que buscou macular a potência do RS da Apufsc e ferir aquela independência, duro jogo que se alongou até o ano seguinte.

Celebrar 13 anos é, portanto, no mínimo, uma grande distorção. Aliás, o convite para este evento é deveras ilustrativo dos vieses do mesmo. A nota da Diretoria, lida na abertura pelo prof. Adriano, esclareceu que o evento não foi organizado como um resgate da história, mas em torno de uma concepção política. Isto explica o convite à CUT (e a alusão ao “13”, recorrentemente posta ao longo daquela tarde? Ajuda a decifrar o caráter político do evento?). E explica também como foi possível excluir aquele que além de presidir a Apufsc em todo o processo de independência do Andes, foi também o primeiro desta nova era. 

Fui preterido por criticar a recente adesão da Apufsc ao Proifes, como se isto implicasse atacar e negar a Carta Sindical, o que é um despropósito. Aquela adesão é que profanou a independência. Por outro lado, ex-presidentes, Proifes e CUT foram convidados, e o foram por, supostamente, serem todos fiéis ao mandato da independência que a categoria então nos outorgou.

Aqui há uma completa inversão.

Como prof. Philippi bem explicitou, houve descontinuidade do projeto do sindicato independente após a gestão que presidi e Philippi secretariou. Ele foi progressivamente abandonado, deixando propositalmente a Apufsc à deriva. Os ex-presidentes presentes podem explicar, não é mesmo?

A natureza política deste evento se escancara quando vemos na mesa os maiores inimigos da independência sindical da Apufsc, os que nela colocaram a pá-de-cal. A composição desta mesa só não é escandalosa, nem um ultraje à história da Apufsc, da ótica dos que derrotaram o projeto de independência sindical…

Diante dos épicos acontecimentos em torno da conquista da independência, este evento é “projetado para fazer mentiras soarem como verdades e o assassinato respeitável” (George Orwell). Mas, como Adriano (organizador do evento), doutor em história bem sabe, quem conta a história são os vencedores. 

Em verdade, aqui estamos no estágio 2 desta trama, o da reescritura da história, agora com sinais trocados. O que permite hoje tamanha cara-de-pau, pois contrária aos fatos ocorridos, é o estágio 1, o do apagamento desta memória que ocorreu lá atrás. “Os professores novos não conhecem a história”, expressou ainda há pouco Bebeto. Mas como a conhecerão se todos os antigos Boletins da Apufsc, registros nítidos do que se passou, sumiram? Estava tudo on-line até o meu mandato. Já que aqui estão os ex-presidentes que me sucederam, não é difícil saber quem foi o responsável pelo apagão.

Estamos num momento mais-que-oportuno para iniciar uma releitura dos últimos 15 anos da Apufsc, de fazer a anatomia da nova forma nascente em que adentramos. A experiência já nos dá clareza para vermos acertos e erros do que surgiu desde então.

Este balanço é relevante ainda mais agora que uma nova geração já se faz presente. Pois é, contrário a todas expectativas, pululam docentes universitários que ousam romper com o produtivismo autista e, sem abandonar a pesquisa, se interessam pelo sindicato, nosso commons (pois, em tese, cuida da casa comum).

Ora, a responsabilidade de corrigir erros, de buscar aperfeiçoar o que somos, é renovada a cada geração. A cada giro em torno do sol temos a possibilidade de novos começos. Os novos bem sabem que “caminhante, não há caminho, caminho se faz ao caminhar” (A. Machado). Recomeçar, ter direito ao seu próprio futuro, é expressão plena da vital liberdade, a qual define o fenômeno humano.

Não tenho procuração para falar em nome dos mais jovens, mas o que vimos na última greve foi que estes não estão confortáveis com um sindicato asséptico, esterilizado e desdentado, fazendo política de cima para baixo como se fosse um puxadinho do Proifes … Sem dúvida é prazeroso ter botecos e cafés, mas é mórbido sindicalmente que estas sejam as principais atividades que a Diretoria organiza para “mobilizar” a categoria…

A eles me junto. Aspiramos o contrário de um sindicato letárgico, capturado por Diretorias que ora se defende dos docentes, ora os atacam e abandonam. Estamos numa jornada por um sindicato guiado pela bússola da moral, dos afetos, sonhos e lutas.

Mas, não cabe, nesta brevíssima e não agendada intervenção, aprofundar e fazer o necessário minucioso balanço da história recente, ainda que os tempos exigem que em breve o façamos. Exigem também dar espaço aos jovens. Todos os que presidimos a Apufsc nascemos na década de 1950 ou antes (somos avós com no mínimo 65 anos)…

No momento, apenas pontuarei, metaforicamente, de forma indicativa para futuras reflexões, dois elementos provindos das mais expressivas literaturas acadêmicas que muito poderão nos inspirar nesta revisão.

Bruno Latour (em “Love your monsters”) lembra que o dr. Victor Frankestein foi acusado de ser “aprendiz de bruxo”. Isto, todavia, encobriu outro crime, infinitamente mais grave: ter fugido horrorizado de sua criatura, que só se tornou um monstro porque “foi abandonado por seu criador”.

Já Hirschman, um dos meus heróis, em “Saída, voz e lealdade” apresenta um quadro conceitual, hoje clássico, das três grandes opções da política (e da economia). “Voz” expressa a dimensão da pressão, luta e busca por influenciar e mudar a organização. “Saída” é a opção por deixar a organização (ou não comprar o produto). A “lealdade”, “esperança de que dias melhores virão”, é uma barreira que neutraliza a deserção, levando as pessoas a serem criativas ou passivas.

Afirma então que “saída” gera efeitos destrutivos, uma vez que “a presença da opção de saída pode reduzir drasticamente a possibilidade de que a opção de voz seja adotada ampla e efetivamente”, “pode atrofia-la”…

  1. Intervenção feita quando a palavra foi aberta ao público, no evento que celebrou os 13 anos da Carta Sindical da Apufsc, em 22.8.24.
  2. Após mais de quatro décadas de jornada, num giro onde cúpulas frequentei, retorno à base e falo desde o chão. 

*Armando Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)