Estação de seca agravada pela passagem do El Niño contribuiu para a propagação dos incêndios florestais
Santa Catarina foi um dos dez estados afetados pelas queimadas que assolam a Amazônia. Nas últimas semanas, o céu de cidades catarinenses foi encoberto pelas nuvens carregadas de fumaça que atravessaram o país. O fenômeno, popularmente denominado como “corredor de fumaça”, vem tomando uma proporção crítica devido ao nível recorde de incêndios florestais registrados em agosto de 2024.
Apesar de sua origem na floresta amazônica, a camada de fuligem registrada na atmosfera catarinense foi, ainda, intensificada pela fumaça vinda dos focos de fogo no Pantanal. Bernardo Flores, pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e líder de um estudo publicado na revista Nature sobre o colapso da Amazônia, explica que o período de seca, agravado pelo segundo ano de passagem do El Niño no Brasil, é um dos responsáveis pelo cenário.
O fenômeno, caracterizado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico Equatorial, teve início ainda em junho do ano passado e foi classificado, até abril desse ano, como de intensidade moderada a forte pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Durante esse período, o Monitor de Secas registrou o crescimento delas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Em alguns locais, a gravidade passou de fraca a extrema. Já na região Sul, as áreas de seca moderada a extrema desapareceram ao longo dos meses, e deram lugar às fortes chuvas responsáveis pelas enchentes do Rio Grande do Sul no mês de maio.
De abril a junho, o El Niño enfraqueceu até dar abertura para uma possível formação do La Niña, mas suas consequências seguem afetando a região no que os especialistas chamam de “efeito legado”. O legado, nesse cenário, é a falta de água. A forte crise hídrica dos últimos meses, somada à estação atual mais seca da região – uma segunda onda do problema – tornam a vegetação inflamável, um combustível pronto para queimar com uma ignição, geralmente associada ao desmatamento e a áreas de pastagem que se manejam com fogo.
“Esse fogo se espalha. E aí, além do fogo que se espalha no Pantanal e para dentro de florestas, na Amazônia tem áreas que foram desmatadas, que fica todo aquele combustível, aquela floresta derrubada e que precisa ser queimada. Essa estação sempre é o momento de queimar, uma estação seca mais intensa como essa é perfeita para queimar”, explica Bernardo Flores. Nesse caso, o combustível das queimadas, diz o pesquisador, é a chamada biomassa morta da floresta.
Sobre a nuvem cinza que cobriu Santa Catarina, o pesquisador explica que “é muito provável, que toda essa fumaça venha de biomassa morta de áreas desmatadas recentemente na Amazônia, incêndios florestais que estão se espalhando pela floresta, incêndios no Pantanal e incêndios no cerrado.”
A fuligem chega ao outro extremo do país através dos fluxos atmosféricos, os mesmos “rios voadores” – como essas correntes costumam ser chamadas – responsáveis por trazer chuvas para a região Sul. Em maio, trouxeram as chuvas catastróficas que afetaram o Rio Grande do Sul e, agora, trazem a fumaça dos incêndios florestais.
Risco à saúde
As micropartículas de cinzas presentes no ar carregado dessa fumaça representam, segundo Flores, um risco à saúde. O aumento de hospitalizações por problemas respiratórios, por exemplo, pode ser uma consequência percebida nos próximos meses.
“E isso vai continuar. Vai continuar chegando para cá nos próximos meses e se espalhando pelo Brasil. Eu espero que ao menos sirva para todo mundo se conscientizar melhor do problema e da importância que isso tem, porque é uma coisa que não afeta só quem está lá em Manaus. A cidade de Manaus está cercada de fumaça, mas essa fumaça vai bater aqui também”, acrescenta o pesquisador.
Para além disso, Flores menciona os riscos ambientais dos incêndios responsáveis pela fumaça que chega até Santa Catarina. A emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, bem como a perda de ecossistemas, biodiversidade, a desregulação do clima e os prejuízos para a população local estão entre os principais pontos de gravidade da situação.
Recorde histórico
Desde o início do ano, o Brasil vem registrando números históricos nas áreas de queimadas, que estavam em queda desde 2022. Em janeiro, os dados divulgados pelo Monitor do Fogo – plataforma do projeto MapBiomas – mostraram um aumento de 248% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Foram mais de 1 milhão de hectares consumidos pelo fogo apenas no primeiro mês de 2024.
Para explicar esses dados, o MapBiomas diz, em termos comparativos, que é como se metade do estado de Sergipe tivesse queimado. Cerca de 941 mil desses hectares pertenciam à Amazônia, o que corresponde a 91% do total.
Mais adiante, os dados compilados entre janeiro e abril seguiram batendo o recorde. Nesses quatro meses, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 17.182 focos de fogo no Brasil, um aumento de 81% em relação ao ano anterior e ultrapassando a marca de 16.888 incêndios registrada pela última vez em 2003. Nesse mesmo período, na Amazônia, a quantidade de focos foi de 8.977, 153% a mais que 2023 e o maior número desde 2016.
Até julho, uma área equivalente a mais de 4 milhões de hectares já havia sido queimada na Amazônia Legal, um crescimento de 85% em relação ao ano passado. Agora, em agosto, esses dados tendem a ser ainda maiores. Enquanto 2023 registrou 14,8 mil focos de incêndio durante todo o mês de agosto, 2024 já ultrapassou a marca de 26 mil antes do fim do mês. É o maior número da década para a região.
Desmatamento em queda
Esse crescimento na área queimada, por sua vez, é uma oposição em relação à queda no desmatamento da Amazônia Legal registrado nos últimos tempos. Dados divulgados pelo Inpe mostraram que, entre agosto de 2022 e julho de 2023, houve uma queda de 21,8% na taxa de área desmatada. O número bruto foi de 9.064 quilômetros quadrados, o menor registrado desde 2019. Já nos números registrados entre agosto de 2023 e julho de 2024, a área sob alerta de desmatamento foi de 3.644 quilômetros quadrados, uma queda de 51% em comparação ao período anterior, mesmo que o mês de julho tenha sofrido um aumento de 33,2%.
Bernardo Flores explica que, apesar desses números serem bons indicativos da redução de área florestal devastada, ainda são territórios muito extensos de destruição. Quando queimados – o que acontece com facilidade em razão tanto da seca quanto do rápido alastramento do fogo em solo danificado – ainda são capazes de produzir as densas ondas de fumaça que se espalham pelo país. É uma consequência da destruição que, mesmo que em anos anteriores tenha sido causada em maior proporção, ainda não acabou.
Próximos meses
Segundo Bernardo Flores, a região Norte do país – incluindo a Amazônia e o Cerrado – e o Pantanal estão apenas no começo de sua estação seca, que costuma se estender até novembro. Esse período já representa, normalmente, o maior pico das queimadas florestais, justamente pela facilidade de propagação do fogo em solo ressecado.
Em 2023, por exemplo, 10,4 milhões de hectares foram queimados apenas entre setembro e novembro, o que representa 63% dos 17,3 milhões de hectares que queimaram ao longo de todo o ano. E, se a primeira metade de 2024 já registrou índices históricos de incêndios florestais, a tendência é que o segundo semestre seja ainda mais grave conforme o período de estiagem avança pela região.
O pesquisador da UFSC explica, ainda, que há previsão de chegada do La Niña – fenomêno oposto ao El Niño, em que as águas do Pacífico esfriam – que costuma trazer longos períodos de chuva e poderia diminuir a gravidade da situação dos incêndios na Amazônia nos últimos meses do ano. Mas ainda não há data para que isso aconteça: “até a La Niña começar, lá no Pacífico, e ter os efeitos, leva entre um e dois meses. Porque você tem a chuva e você tem o tempo que leva para preencher o solo de água de novo e reduzir a inflamabilidade do solo e da vegetação”, completa.
Para o pesquisador, os danos ao ecossistema podem ser quase irreversíveis. Como ele explica, “quando uma floresta queima ela fica inflamável, então a chance dela queimar de novo é muito alta.”
Isso significa que, ainda que a situação seja controlada, pode levar décadas para que a área degradada seja recuperada, já que a tendência é que ela volte a queimar em pouco tempo devido aos danos. Como exemplo, ele cita o Pantanal, em situação crítica pois as florestas que queimaram há cerca de quatro anos na região estão, mais uma vez, em chamas. “Pode ser que não se recupere nunca mais no nosso tempo de vida”, afirma, sobre o bioma.
Laura Miranda
Imprensa Apufsc