*Por Rosane Silveira
Quando se defende que no serviço público em geral e nas universidades em especial é necessária inventarmos novas formas de luta, logo vem alguém sugerir que o autor da sugestão é contra a greve. Então, para começo de conversa, é preciso desfazer esse equívoco. Defender novas formas de luta não significa abdicar da greve como uma delas; significa, isso sim, ser redobradamente cuidadoso com a sua deflagração, ao menos mais do que costumávamos ser nos anos de 1980/1990.
Na década de 1980, quando o país saía de vinte e cinco anos de ditadura, as greves emergiram como a forma mais contundente e efetiva de ação política de professores e servidores públicos em geral. Não por acaso, nesses anos cunhou-se um grito repetido em todas as manifestações do setor público ou privado: “greve geral, derruba o general”. Foi um momento importante para a reorganização (ou mesmo criação) de associações e sindicatos. Momento da emergência de novos movimentos sociais, por moradia, por transporte, por creches, por escolas, por postos de saúde etc. Os vinte e cinco anos de ditadura civil-militar haviam criado um represamento na luta por direitos que explodiu na cena pública no final da década de 1970 e atravessou os quinze anos seguintes. A luta pela democracia aparecia como o direito a ter direitos. As greves criavam um grande constrangimento para o regime civil-militar e para seus apoiadores, revelavam as limitações da abertura lenta e gradual e forçavam um debate verdadeiramente amplo sobre o país que queríamos.
Mas, bem ou mal, já estamos distantes desse período. Em 2025, faremos quarenta anos do fim da ditadura civil-militar. A democracia, mesmo com todas as suas limitações, parece consolidada, mesmo com os abalos dos últimos seis anos. Claro que estamos pensando numa democracia formal, nos processos eleitorais regulares (numa democracia liberal, se se quiser) e não numa democracia como soberania popular efetiva; essa, infelizmente, ainda continua no nosso horizonte utópico. Mas, nem por isso, a outra deve ser desprezada.
Entretanto, as universidades se transformaram muito nessas últimas quatro décadas. A pergunta que fica é: hoje, as greves têm o mesmo efeito, o mesmo impacto? Sobretudo se consideramos que, nesses quase quarenta anos, tivemos muitos avanços democráticos promovidos e, pelo menos, cinco governos da centro-esquerda.
Pode parecer óbvio, mas é preciso repetir, quatro argumentos, já apresentados vinte e dois anos atrás em texto do professor Daniel Aarão: primeiro, as universidades públicas prestam um serviço público, não produzem lucro privado, por isso, os maiores prejudicados com uma greve são os estudantes, mais os de graduação do que os de pós-graduação, porque, em geral, das as demandas de prazos de bolsas, estas nunca param, as pesquisas também não param, sobretudo nesses tempos em que lidamos com um produtivismo publish or perish; segundo, a perda das aulas de graduação, mesmo com as atualizações de cronograma e as reposições de aula, implicam numa perda irrecuperável, sobretudo se levarmos a sério a noção de sociedade do conhecimento, uma noção que define as sociedades atuais menos baseadas na produção industrial e agrícola, mas principalmente, na capacidade de produzir informação. Como todos sabemos, o Brasil não está na primeira prateleira dos países produtores de conhecimento e uma greve que paralisa as universidades públicas contribui para manter o país nessa condição de dependência da produção científica que vem de universidades no exterior. Por fim, mas não menos importante, as greves nos últimos vinte anos têm acontecido sobretudo sob governos democráticos nos quais há a garantia, diga-se de passagem, constrangedora, de que dure o tempo que durar a greve, os salários serão depositados no final do mês.
Mas gostaria de me concentrar num aspecto específico: os estudantes de graduação. A universidade mudou. De acordo com estudo feito em 2022, pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Gemaa/Uerj), desde 2014, “os graduandos das universidades públicas vêm em sua maioria de escolas públicas (60%) e de famílias com renda de até 1,5 salários-mínimos por pessoa (70%).” Esses dados dizem respeito até o ano de 2018. O estudo realizado pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Fonaprace/Andifes) com base em 424 mil entrevistas, “também mostrou que, com as cotas, as instituições ganharam estudantes que frequentam mais as bibliotecas, dedicam mais tempo aos estudos, têm menor taxa de desistência e são mais engajados socialmente. Já na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede EPCT), que envolve institutos federais, Cefets e o Colégio Pedro II, espalhados por mais de 700 unidades, das 1,5 milhão de matrículas de 2021, 70% têm renda familiar de 1,5 salários-mínimos per capita.”
A composição étnica nas universidades também mudou profundamente a o contexto universitário. “No final de 2019, uma pesquisa do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, anunciou que, pela primeira vez, o número de pretos e pardos era ligeiramente maior nas universidades nacionais: 50,3%. No conjunto da população brasileira, os negros representam 56,6%. Já em 2021, estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostrou que as mulheres negras são a maioria dos estudantes nas universidades públicas, com 27%. O mesmo estudo aponta que, há 21 anos, essa taxa era de 19%. Do total de 1,5 milhão de matrículas da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica em 2021, 43% foram de pretos e pardos, 31% de brancos, 0,41% indígena e 1% amarela, além de 24,5% que não declararam cor/raça.1”
Parece que não resta muita dúvida sobre quem é de fato penalizado com as greves nas universidades. Não é por outra razão que a UFRJ, a maior universidade do país, não entrou em greve esse ano, recorrendo exatamente a argumentos como esses acima apresentados. Isso quer dizer que a greve deve ser descartada como opção de luta? Claro que não; mas antes de chegarmos a ela, deveríamos usar de criatividade e colocar em prática outras formas de mobilização: aulas públicas, pressão sobre parlamentares que moram na cidade, passeatas, programas de rádio, matérias em jornais, sobretudo, uma permanente ação que apresente ao grande público o que a universidade, de fato, produz. A luta política e sindical tem muitas faces, mas precisamos ter clareza de que lado estamos e a quem prejudicamos e, principalmente, quais os custos sociais e políticos de nossas ações.
- https://outraspalavras.net/outrasmidias/cotas-10-anos-uma-revolucao-nas-universidades-brasileiras/ Publicado 30/08/2022 às 14:30 – Atualizado 30/08/2022 ↩︎
*Rosane Silveira é professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC