*Por Raphael Grazziano
Nesta nossa última greve, organizei com estudantes um grupo de estudos, infelizmente de curto fôlego a despeito de nossos anseios, sobre o tema da “autonomia”. A escolha desse tema tinha origem simples: é a autonomia, eu ali tentava defender, que melhor definiria a experiência universitária. É o incentivo à autonomia que primeiro impacta o estudante ao começar a universidade, pois não tem aqui a reprodução conteudística presente no ensino médio (ao menos em seus modelos mais convencionais e frequentes), e sim o incentivo ao estudo independente e ao aprofundamento de seus temas de escolha.
O estudante entra na universidade experienciando a autonomia: não há mais livro-texto absoluto com todas as respostas; o professor muitas vezes termina a aula com novas perguntas. É essa autonomia que promove o senso crítico dos estudantes e coloca-os tanto na produção como na reflexão do conhecimento, ao invés do mero treinamento de habilidades instrumentais.
A universidade também sempre foi vista como um território aberto para a experimentação social cotidiana. Uma área de exceção privilegiada, não há dúvida, em que se poderia experimentar novas formas de organização política, de criação artística, de sociabilidade e de afeto.
E não poderia ser de outro modo, porque a universidade pública está fortemente ligada, mesmo no ensino, à pesquisa. Não há pesquisa sem autonomia, sem a possibilidade de repensar as bases mesmas da produção do conhecimento. Em suas formulações mais radicais, como a de Franklin Leopoldo e Silva em “Reflexões sobre o conceito e a função da universidade pública” (2001), existe quase uma defesa da figura da “torre de marfim”, como se o isolamento universitário dialeticamente impulsionasse a radicalidade crítica. Álvaro Vieira Pinto, 40 anos antes em “A questão da universidade”, opunha-se a esse isolamento, por ver nele uma alienação universitária descolada da tragédia social brasileira. Entre os dois, o ponto é que não há ciência sem autonomia; há, no máximo, a tecnologia a serviço dos dividendos. Se autonomia há, ela deve ser relativa.
Em 12 de junho, o reitor Irineu Manoel de Souza participou de evento na Alesc a respeito da autonomia universitária. Poucos dias antes, a reitoria havia sido notificada pelo Ministério Público a respeito da garantia de circulação pelo campus da comunidade universitária que não havia aderido à greve. O estopim da notificação parece ter sido algumas ações de trancamento do campus, que em seu conjunto não duraram mais do que algumas horas. Questionado sobre a notificação do Ministério Público, o reitor respondeu o óbvio: para realizar as garantias de circulação solicitadas, seria necessário acionar a polícia, o que atentaria contra a autonomia universitária, sem contarmos a simples e desnecessária escalada de violência. Desse modo, outros caminhos de negociação pacífica seriam tomados, dizia o reitor.
A declaração era para ser banal. Mas gerou respostas surpreendentes. O site desta Apufsc, por meio da curadoria jornalística do dirigismo digital de sua atual direção, anuncia em matéria de 12 de junho que “Reitor da UFSC diz que não irá cumprir recomendação do MPF em relação aos bloqueios à universidade”. No texto, “Apufsc cobra providências urgentes da Reitoria”. A saída da desocupação, ou da retirada de piquetes, não é então a negociação política interna da comunidade universitária, mas um caso de polícia. Ato contínuo, nossa assessoria jurídica da Apufsc notifica o CUn em 19 de junho contra uma derrota política que parte de seus membros sofreu. Por essa notificação, os estudantes não deveriam ter direito à reposição de conteúdo caso entrem em greve. Mais do que isso: se a resolução é “inconstitucional” e deve ser cancelada, então todas as conquistas estudantis também serão descartadas, inclusive o direito básico de não serem reprovados por frequência por estarem em greve. Não há espaço para discussão ou para política pedagógica: a mitigação das consequências negativas da greve é caso para um tribunal. Até os próprios conselheiros do CUn, em sessões recentes, utilizaram-se da cartada do Ministério Público.
Ao conselheiro não cabia, assim, fazer propostas para a política universitária, mas terceirizá-las para a justiça; aos professores não caberia, assim, construir modos de equilibrar ação política e verificação de conteúdo, mas a garantia da ordem; aos professores não cabe a negociação de diferenças, mas o socorro da polícia.
Disse acima que a autonomia universitária só pode ser relativa, caso contrário não responde à sociedade em que age. É relativa também porque a comunidade universitária nunca deixa de ser parte da sociedade, inclusive de suas parcelas mais reacionárias. Há apenas dois anos foram identificadas células nazistas em nossa comunidade. Em cada mural dos campi, podemos ver cartazes com denúncias de assédio sexual. Em inúmeras assembleias, podemos ouvir relatos de racismo e transfobia ocorridos aqui dentro. E é nessa mesma toada que repercutem em nossa universidade os discursos da lei e da ordem, da coerção e do silenciamento, que parte do corpo docente infelizmente tem reproduzido. Não faz muito tempo que esta universidade foi cenário trágico das consequências da política transformada em polícia. Não podemos ter memória tão curta, nem descartar um princípio tão básico para o cotidiano universitário quanto a autonomia.
*Raphael Grazziano é professor do ARQ/UFSC