*Por Alexandre Nodari
Na reunião do Conselho Universitário da UFSC do dia 29 de maio, o conselheiro Carlos Barros Montez, representante do Centro Tecnológico (CTC), classificou a greve docente que estamos levando adiante na nossa instituição como “greve selvagem”, aduzindo, em seguida que esse seria o “nome dado” às greves feitas à revelia do sindicato, ou seja, retoricamente apontando que não havia depreciação de sua parte ao invocar a nomenclatura. Intenções à parte, ao menos a mim, a expressão não incomoda: a história interminável da colonização nos dá exemplos mais do que suficientes de que é sempre preferível estar do lado dos ditos selvagens do que dos auto-proclamados civilizados.
Mas, de fato, “greve selvagem” é uma expressão técnico-jurídica que designa, seja de um modo geral, as greves ilegais (ou não legalizadas), seja de um modo mais específico, as greves deflagradas por fora do sindicato oficialmente representativo da categoria. Tudo indica que o termo, e seus cognatos em outras línguas (“huelga salvaje”, “grève sauvage”), traduz a expressão anglo-saxônica “wildcat strike”, “greve-onça”, numa tradução rosiana, “greve não-domesticada”, em outra mais exata, que aponta para o que significa o “selvagem” da expressão: não se trata, a rigor, de uma greve mais violenta ou mesmo exterior à lei, mas de uma greve que não é tutelada. As wildcat strikes ou greves selvagens ao longo da segunda metade do século XX passaram, ao menos na Europa, como lemos em “l’europe sauvage”, de 1970, a ser cada vez menos a exceção e mais a norma, culminando naquelas que tiveram parte no Maio de 68. O motivo é relativamente simples: a “estrutura desligada das bases das cúpulas sindicais” leva “inevitavelmente à greve selvagem”. Não é Raoul Vaneigem ou Toni Negri a dizê-lo, mas um fundador do PT e da CUT, Luiz Gushiken, durante os debates da Constituinte.
Poderíamos inferir daí que o “selvagem” é uma criação, uma decorrência do “civilizado”, mas eu não queria chegar a tal nível de generalidade. Gostaria só de apontar (e não estou dizendo nada de exatamente novo) que a greve, toda greve, é por natureza, tendencialmente selvagem, por uma questão estrutural. Afinal, uma greve se caracteriza justamente por interromper a tutela (patronal), e, portanto, constitui uma violência do ponto de vista jurídico (Walter Benjamin dixit), fazendo cessar, temporariamente que seja, regras acordadas em contratos de trabalho ou estatutos legais de outra ordem. A regulamentação legislativa ou judiciária das greves pode “domesticar” até certo ponto esse caráter “selvagem”, mas não o elimina de todo, o que nós professores, por exemplo, reconhecemos tacitamente quando acordamos uma reposição das aulas ao fim de uma greve: se a greve não fosse uma violência, uma exterioridade à ordem jurídica, não haveria a menor necessidade de fazê-lo. Por isso, não há em nenhuma greve uma garantia plena de sua legalidade, provindo seja da legislação, do Poder Judiciário ou dos procedimentos sindicais. Fazer greve é aceitar os riscos, e estar disposto a perder (e sempre se perde algo, por menor que seja) mesmo para não ganhar nada de quantificável, mesmo que apenas para sair da inação induzida pela tutela e pela domesticação.
A greve não é um direito no mesmo sentido que a estabilidade do servidor público ou o descanso semanal remunerado garantido pela CLT. Também não é uma chantagem pura e simples como a exercida pelo Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas, e agora as Polícias e Forças Armadas, sobre a classe política. Antes, o direito à greve é um “direito” no mesmo sentido que o são o direito de manifestação, o de associação, e mesmo o de insurreição, os quais poderiam ser aproximados dos “direitos originários”, não por antecederem historicamente o Estado ou o Direito, mas por precedê-los ontologicamente e constituírem a origem de outros direitos – e mesmo de direitos outros. Como se sabe, no direito brasileiro, os “direitos dos povos originários” (First Peoples Rights) são considerados “direitos originários”. Não se trata, porém, de uma relação de sinonímia, pela qual a segunda expressão seria uma elipse da primeira. Os direitos dos povos originários são direitos em si originários porque, segundo o formulador do conceito, João Mendes Jr., o direito dos indígenas aos seus territórios (e, por consequência, à sua autonomia política e existencial, e à sua própria juridicidade) é um “direito originário e preliminarmente reservado”, persistindo mesmo diante da apropriação de terras e a ocupação pelo direito branco, um direito que ele chama também de “virtual”, por existir ainda que os indígenas não estejam na terra que reivindicam e da qual foram expulsos por invasões, um direito que não pode ser limitado por nenhum marco temporal ou outra regulamentação legal. Os direitos dos povos considerados por tanto tempo e ainda hoje “selvagens” por aqueles auto-proclamados “civilizados” são originários porque, exteriores por precedência (onto-)lógica ao Estado, cabe a ele (é a Constituição que assim enuncia) apenas reconhecê-los, jamais tutelá-los, afinal, sua existência jamais se esgota no seu reconhecimento. Eis o sentido ulterior da sua originariedade: eles “originam” a si mesmos no plano legal ao serem exercidos ou reivindicados, mas ultrapassam toda tradução jurídica. O direito à greve é como um desses (contra-)direitos “selvagens” que nunca podem ser contidos (em todos os sentidos da palavra) pela lei. É através da própria greve, e não da tutela legal, que o direito de greve se (auto-)constitui juridicamente: sua única garantia é o seu próprio exercício, do qual podem se originar outros tantos direitos que nem sabíamos ter sempre existido. Por isso, sua régua não pode ser nenhuma Lei de Greve, mas tão somente o mais inalienável dos direitos, aquele que Oswald de Andrade chamava de “direito ao sonho”.
*Alexandre Nodari é professor do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas