*Por Armando Lisboa
“É inegável que a norma da maioria pode ser quase tão hostil à liberdade quanto a norma da minoria: o direito divino das maiorias é um dogma tão pouco dotado de verdade absoluta quanto qualquer outro. Um Estado democrático forte pode levar facilmente à opressão seus melhores cidadãos, a saber, aqueles cuja independência de espírito faria deles uma força em prol do progresso” (Bertrand Russel).
A chefia do meu Departamento fez uma enquete na primeira semana de greve sobre a adesão a mesma entre os docentes. Entre quase quarenta respostas, 2/3 confirmaram que estão aderindo, e 1/3 não. A adesão possivelmente seria ainda maior, pois alguns colegas favoráveis à greve não paralisarão face a circunstâncias muito específicas.
Pelo menos em nosso Departamento (onde apenas 20 colegas são sócios da Apufsc), há uma grande discrepância para com o resultado apertado das urnas que deflagrou a greve. Como explicar?
Bem, naquela votação sindical apenas sócios participaram, e a imensa maioria deles são docentes antigos. Aliás, mais da metade dos sócios da Apufsc são aposentados. A ampla maioria dos novos professores não é associada.
Desconheço quaisquer análises sociológicas sobre a nossa diversidade. É sabido que o plus salarial dos mais antigos, em geral já titulares e/ou aposentados, bem como longas décadas de trabalho, lhes deu uma qualidade de vida em geral muito superior à dos mais novos. Mas, ainda não se demonstrou factualmente que os novos sejam mais propensos à greve que os antigos já melhor acomodados …
Intuitivamente também se percebe que docentes antigos tendem a ser mais refratários a greves, pois na sua memória pesam as lembranças do “grevismo” fácil e minoritário do passado.
Mas, na ausência de pesquisas empíricas, generalizar é falhar. Em verdade, numa categoria marcadamente idiossincrática como a nossa, generalizações são muito mais precárias que em outras. Conheço colegas novos fortemente contrários à greve, bem como docentes titulares que em greve estão.
Há um outro motivo daquela discrepância, e talvez o mais influente: é o posicionamento de colegas que votaram contra a greve mas acatam a decisão da maioria e paralisarão suas aulas.
Isto enseja uma discussão mais delicada.
Na AG anterior (início de abril) a maioria foi contra a greve. E se os favoráveis à mesma desrespeitassem a decisão da categoria e resolvessem paralisar? Seria inadmissível, correto?
Porque o contrário é admissível e cabível? Porque se admite o desrespeito ao resultado de AG favorável à greve?
A meu ver, a decisão democrática favorável à greve no âmbito da nossa profissão docente não tem efeito vinculante (como falam os juristas). Situações particulares podem prevalecer, como a da colega esta semana contratada para assumir turmas que estavam sem aulas desde o início do semestre; ou do colega cujo contrato encerra no próximo mês … Elas decorrem das muitas particularidades do trabalho docente (laboratórios; acompanhamento de tratamentos clínicos; compromissos contratuais com atividades de pesquisa/extensão; exíguos prazos para finalizar trabalhos, especialmente nas PGs, e tantas outras …), inerentes ao grande grau de autonomia de nosso labor, mormente na universidade brasileira que não se organiza mais em torno da cátedra.
Mas, uma greve nos coloca diante de um conflito dilemático: entre o nosso intrínseco modus operandi fundado na autonomia pessoal, e a lealdade à nossa comunidade. Ainda que o “livre-arbítrio” configure elemento crucial da docência universitária, sabemos que há limites ao mesmo, pois nossa liberdade não é absoluta. Afinal, sendo a universidade uma comunidade epistêmica, convivemos e evoluímos numa mutualidade competitiva, na qual ora cooperamos, ora disputamos recursos (em geral insuficientemente disponíveis).
A greve impõe-se quando nossas crescentes dificuldades são insolúveis se enfrentadas de forma narcisa e burocrática. Diante de questões macro-institucionais adversas, onde enfrentamos o mesmo “inimigo”, sucumbiremos se não nos apoiarmos mutuamente. Ignorar aquelas situações de classe, e simplesmente seguir indiferente na impiedosa busca por vantagens, está longe de ser a postura mais inteligente e vantajosa.
Estamos num meio onde as sinergias de nossas interações (inclusive as conflitivas) são vitais para uma carreira profícua e criativa. A greve é um momento de expansão de dinâmicas solidárias e coletivas. Ofende-las e afrontá-las não parece ser a melhor opção, pelo contrário. Agir de forma mais cautelosa e empática, e menos individualista, além de ser o único modo de corrigir problemas cada vez mais cruciais, pode trazer muitos benefícios.
Face ao agir cego e egótico (onde alguns priorizam a programada viagem das férias de julho …), é necessário trazer o óbvio: assim como todos os demais seres vivos, também dependemos uns dos outros. Ou seja, o diálogo e a busca política de entendimento sobre a situação comum é tarefa permanente. Buscar este patamar comum é válido ainda mais numa greve.
*Armando de Melo Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)