*Por Fábio Lopes da Silva
Cheguei à UFSC como professor há trinta anos, em 1994. Eu era extremamente jovem – e, como é próprio da idade, impetuoso, arrogante e ignorante. Vinha de uma família para a qual a política era um valor importante, mas minha ideia era habitar a torre de marfim e virar um acadêmico típico. O horizonte mais amplo de minha carreira era lecionar em uma universidade americana.
Eis, no entanto, que minhas fantasias e planos bateram de frente com a realidade. Àquela altura começava o governo FHC, que patrocinou um projeto deliberado de destruição da universidade. Metido à besta que eu era, comecei a falar de política e vida institucional nas reuniões de departamento e de centro, o que me fez parar no Comando Local de uma das greves que a categoria organizou no final da década de 1990. Lá me aproximei de colegas bem mais versados em sindicalismo e universidade do que eu. Formamos um grupo de intervenção na UFSC sob a liderança do Prof. Nildo Ouriques.
Nas três vezes em que Nildo se candidatou a reitor, fui o braço direito dele. Só que, depois de sucessivas derrotas, ele acabou por sair de cena, passando a emprestar o seu apoio às candidaturas do Prof. Irineu. Acompanhei-o nesse movimento também.
Mas tudo tem limite. Na última eleição, ao observar o grupo de apoiadores do atual reitor, pedi meu boné. Tenho há muito tempo feito a crítica à miséria política da esquerda brasileira (que agora, meio envergonhadamente, se autointitula progressismo). Em particular, dediquei boa parte dos últimos anos a refletir sobre o raquitismo da esquerda universitária, uma gente a meu juízo infantilizada, perdida, eternamente à espera do Apocalipse ou de um milagre, a depender do dia.
Aquele não era mais meu time, de modo que decidi tentar a sorte em outras bandas, buscando articular uma alternativa política com pessoas que conheço há décadas e em quem confio muito, como o Prof. Edson De Pieri, a Profa. Marcela Veiros, o Prof. Nilton Branco.
Digo tudo isso para concluir que a razão fundamental para eu não ter apoiado o Prof. Irineu desta vez foi ideológica. Mas é claro que eu, por tabela, achava que daquele mato tampouco sairia uma gestão administrativamente eficiente.
Meus prognósticos sobre a (des)orientação ideológica do reitorado do Prof. Irineu estão se confirmando plenamente: do ponto de vista das ideias políticas, culturais e acadêmicas, a Administração Central é hoje uma barafunda que muitas vezes beira a caricatura. Ataques destrambelhados à causa Palestina convivem com bobagens colossais como a permissão para que, por razões religiosas, uma aluna se forme de beca branca, o que, de um único golpe, viola o caráter laico da instituição, o republicanismo expresso pela beca preta igual para todos os formandos e, last but not least, a excepcionalidade da função do
reitor indicada na cor branca de suas vestes cerimoniais. Três erros grotescos em um só pacote. Já podem pedir música no Fantástico.
Querem mais um exemplo do que é a confusão ideológica que nos está sendo imposta? Quem entra no campus João David Ferreira Lima dá de cara com um cartaz enorme que faz as vezes de cartão de visitas e resumo da linha de ação e pensamento da universidade.
Nele não há uma unica palavra sobre ciência, tecnologia, ensino ou arte. No lugar disso, surge o lema “UFSC antinazista”. Sério mesmo que, no meio da demolição da Universidade – perpetrada desde a crise do governo Dilma e agravada por Temer, Bolsonaro e Lula, com a nossa doce cumplicidade –, o problema da UFSC continua a ser três ou quatro descabeçados que tentaram articular uma célula nazista no estado, foram rapidamente descobertos pela polícia e agora estão borrando as fraldas vendo o sol nascer quadrado? A respeito desses tontos, secundo aqui o que disse Francis Fukuyama ao justificar sua relativa despreocupação com o terrorismo islâmico: para ele, a questão no fundo se resumia a um “bunch of guys with no jobs or girlfriends”.
Quanto à conduta administrativa, repito o que disse acima: eu não alimentava nenhuma esperança de que a atual reitoria fosse se sair bem. Mas sinceramente não podia imaginar que esta fosse ser o desastre completo a que estamos assistindo.
Vou aqui tentar isolar os três motivos por que, a meu ver, essa tragédia admistrativa
está se dando:
- O primeiro é a inação do reitor, a sua incapacidade alarmante de tomar decisões ou mesmo de expressar opiniões sobre qualquer assunto que seja. Alguém sabe o que o Prof. Irineu pensa sobre algum tema minimamente importante? Observando esse silêncio e essa inaptidão para agir, ocorre-me aplicar a ele uma expressão maravilhosa de Oscar Wilde: o reitor é também “uma esfinge sem segredo”. A sensação que tenho é a de que ele é aquele técnico de futebol cujo time está tomando um vareio, mas não faz nenhuma substituição, apesar dos protestos desesperados da torcida.
- O segundo problema é a olímpica e perturbadora indiferença da vice-reitora em relação a qualquer tema que não seja a pauta identitária (orientada, aliás, por um identitarismo seletivo, que diz respeito a certas minorias, visto que grupos como os surdos – e, by the way, os palestinos – seguem abandonados à própria sorte). Sem explicações, ela saiu do grupo que os diretores de unidade mantêm com a reitoria no Whatsapp; ela muito raramente vai às reuniões do reitor com os diretores; ela quase nunca o acompanha em suas visitas ao centros; ela frequentemente o deixa apanhar sozinho, ao mesmo tempo que está sempre pronta a participar de inaugurações, viagens aos quatro cantos do mundo e outros momentos alegres da rotina administrativa.
- O terceiro problema é a exuberante fragilidade da equipe. Para a maior parte dos cargos, se eu fizesse uma lista de 50 candidatos possíveis, os escolhidos pelo reitor não estariam nelas. As exceções são os titulares da PROGRAD, PROPG, PRODEGESP e PROPESQ. Não que eles sejam propriamente entusiasmantes, mas ao menos têm um certo histórico que os credencia e, de resto, se revelam empenhados em fazer o feijão-com-arroz (embora entre estes últimos haja quem acredite estar reinventando a roda). O fato é que os demais são neófitos, arrogantes, despreparados e/ou confusos. Há alguns ali em que, em minhas três décadas de atuação contínua na vida institucional, nunca vi mais gordos e, a rigor, não sei dizer de onde saíram para, sem escalas, ocupar postos remunerados com CDs no valor de quase 10 mil reais.
Costumo brincar – rindo para não chorar – que se eu colocasse em um saco os nomes de todos os pró-reitores e secretários e sorteasse quaisquer três para demitir, não estaria cometendo erro ou injustiça.
Mas, claro, há casos definitivamente perdidos. O prefeito universitário, com seus planos mirabolantes e discursos empolados – quando tudo que se quer dele é que impermeabilze prédios, troque válvulas de descarga e conserte e limpe aparelhos de ar condicionado – é um deles. O outro é o ocupante da PROAD, que transforma as reuniões para as quais é chamado em simpósios acadêmicos sobre como é difícil celebrar contratos e fazer compras. Para piorar, faz inúmeras viagens dispensáveis, tira férias nos momentos mais inapropriados e, em plena crise, em uma demonstração absolutamente constrangedora de falta de compostura e entendimento da liturgia de sua posição, exibe sua juvenil alegria e deslumbramento com o turismo que faz às custas do cargo nas suas redes sociais.
Outro exemplo que tangencia o inacreditável é a titular da PROAFE. A par de sua ativa participação em trapalhadas já mencionadas neste artigo – como a pueril beca branca ou a sua intervenção no tema da causa palestina, do qual ela evidentemente não conhece bulhufas – , cumpre citar a sua estupenda letargia no caso da matrícula de cotistas ingressantes. Seis longas semanas foram necessárias para que, provavelmente por pressão da PROGRAD, a PROAFE finalmente autorizasse ex officio a integração automática desses estudantes à instituição. Os prejuízos decorrentes de tal falta de iniciativa foram enormes. Por óbvio, pessoas em condição vulnerável foram submetidas a angústias e incertezas completamente desncessárias e disparatadas – e o que é pior: perpetradas por um setor criado justamente para garantir direitos a esses indivíduos. Mais grave ainda: no caminho, sob o sol escaldante
do desamparo, muitos desses estudantes desistiram, sem que nem mesmo suas vagas pudessem ser repostas. Ou seja: sonhos foram destruídos, ao mesmo tempo que um número importante de vagas ficou a descoberto, o que pôs a perder todo o trabalho feito pela instituição para atrair mais candidatos às provas de seleção. E tudo isso por obra e graça da bem remunerada paralisia de uma única pessoa.
Em tempo: rigorosamente tudo o que manifesto aqui foi dito aos mais altos membros do gabinete do reitor em conversas privadas. Só o faço agora em público porque essa sucessão vertiginosa de equívocos morais, políticos, técnicos e ideológicos não conheceu até aqui qualquer medida corretiva.
Em breve, a categoria docente vai apreciar o indicativo de aderir à greve nacional. Razões para paralisar as atividades há aos montes. Mas é preciso antes separar o joio do trigo e distinguir o que é de César e o que é de Deus. É óbvio que o motivo principal de estarmos na encrenca em que nos encontramos é macropolítico e macroeconômico. Mas, para começar, a história de como nos metemos nesse buraco é bem mais complicada do que a que costumamos contar.
Ela começa não no so-called golpe, mas bem antes disso: no nosso silêncio e omissão durante os dois primeiros governo Lula, o Complacente, e na administração ruinosa Dilma Rousseff. Foi ali que, em vergonhosa conduta governista de nossa parte, começou a se construir o desmonte por dentro do sindicato, a alienação e a inanição política a que estamos presos e que, a esta altura do campeonato, torna tão difícil a nossa tarefa de defender a instituição.
O cavalo está passando encilhado novamente por nós. Só que, para entrar em greve, cabe previamente reconhecer algumas verdades elementares: primeiro, que parte da responsabilidade pelo que estamos vivendo é nossa; segundo, que outra parte é dos governos petistas do passado e, agora, do atual governo Lula. Queiram ou não os lulistas e os criptolulistas, Lula é a bola da vez, e não faz greve sem querer arrancar as amígdalas do patrão pela orelha.
A última verdade elementar a ser reconhecida – e é sobre ela que este ensaio se concentrou – é a de que muito do drama que estamos vivendo decorre da atuação desta Reitoria. Ora, se não formos capazes de admitir nem isso (de admitir, por exemplo, que consertar os prédios com salas de aula em frangalhos não exige rocket science mas um conjunto de medidas administrativamente triviais, tecnicamente simples e ridiculamente baratas que não estão sendo implementadas por pura incompetência), não iremos a lugar nenhum.
Não se faz greve se não se compreende quem são os alvos, qual a natureza dos problemas, quanto (nos) custa corrigi-los. Não se faz greve sem conhecimento e coragem. Não faço greve com quem, nos meus tempos de carioca, chamávamos de vacilões.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC