Confira a entrevista da professora Ligia Bahia, uma das fundadoras do Observatório do Conhecimento, ao Estadão
A médica sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, voltava de uma viagem de um mês no Japão quando as primeiras notícias do coronavírus começaram a atingir o Brasil. E, de certa forma, ela própria. Era comecinho de março. A UFRJ já havia decidido pôr em quarentena funcionários que estiveram no exterior. Somado a isso, com 64 anos, ela mais que pertencia ao grupo que precisava se trancar em casa. Professora e pesquisadora, mudou a rotina, passou a fazer videoconferência com alunos e colegas, para que os trabalhos principais não fossem descontinuados. .
Um mês depois da quarentena, ela atesta: “Isolamento vertical é uma invenção política, sem fundamento científico. É política porque tenta identificar o ‘inimigo’ e o ‘aliado”’, se referindo à ‘modalidade’ defendida publicamente por Bolsonaro. “O coronavírus não escolhe vítimas levando em consideração a faixa etária ou social”, completa. Qual a grande lição que hoje já podemos tirar disso tudo? “Vamos continuar a defender o SUS, a ciência, a medicina e tenhamos consciência da fragilidade humana”. Veja principais trechos da entrevista à jornalista Sonia Racy.
Que riscos corremos se o Brasil quebrar o isolamento domiciliar agora?
Estamos no início do crescimento da epidemia no Brasil e justamente no momento de buscar reduzir ao máximo os contatos para retardar a velocidade de disseminação. Esse intervalo temporal é essencial para evitar sobrecarga aos hospitais, ganhar tempo para expandir a rede assistencial.
O que pensa sobre o isolamento vertical? A Inglaterra, por exemplo, tentou mas voltou atrás…
É uma invenção política, sem nenhum fundamento científico. É política porque tenta identificar o “inimigo” e o “aliado”. Mas o coronavírus não escolhe suas vítimas considerando condição etária ou social. O vírus infecta seres humanos, não escolhe raça, cor, idade, condição social, sexo. Os idosos são mais suscetíveis a desenvolver quadros graves causados pela Covid-19 mas os jovens também ficam doentes e alguns infelizmente muito doentes. Portanto, o isolamento, o distanciamento social, é para todos ou não tem sentido.
Considerando a origem do coronavírus, ele é uma doença da classe média, ‘importada’ e de alta transmissibilidade. Mas ainda se desconhece com qual velocidade vai se espalhar em comunidades onde existe grande aglomeração. O que se sabe dessa transmissão?
Os casos no Brasil evidenciam transmissão comunitária e um padrão de disseminação rápido – similar a de países que demoraram para adotar estratégias de distanciamento social.
Quais orientações a senhora dá para as pessoas das comunidades ou que moram com muitos familiares?
Lavar as mãos sempre, muitas vezes por dia. Tentar não sair de casa e se precisar higienizar roupas e sapatos – se possível deixar do lado de fora ou na entrada da casa. Se alguém da moradia apresentar sintomas, tentar usar máscara ainda que de pano, pode improvisar, e separar copos, talhares e pratos, toalhas e roupa de cama.
O que dizer para quem está em casa vendo notícias de que todos nós vamos pegar o coronavírus em um dado momento?
Não é isso, todos vão pegar. O vírus pode não afetar a saúde da pessoa infectada, ser assintomático. Uma parte das pessoas infectadas, aliás, tiveram contato com o Covid-19 mas não tiveram qualquer sintoma. Haverá sim um momento em que o número de casos sintomáticos graves começará a diminuir porque o vírus perderá o ritmo de disseminação – ficará mais difícil contagiar alguém porque haverá uma proporção da população imune. Mas não quer dizer que não poderá haver um segundo pico da epidemia. Ou seja, há muitas incertezas. O que podemos afirmar é: precisamos da vacina.
A pandemia jogou luz na necessidade de investir em ciência?
Estão postas duas coisas muito claras: a importância da ciência e do SUS. Sem a ciência, a pesquisa, a universidade não vamos desenvolver vacina, testar medicamento, produzir kits diagnósticos e não vamos enfrentar nem essa nem outras pandemias que virão. E sem o SUS seria muito pior. É preciso que o governo reconheça qualificado o sistema à altura, e assim, que ele seja melhor financiado. A gente não pode brincar com isso.
No ano passado, o governo federal fez cortes em bolsas do Capes para mestrados e doutorados, reduziu em mais de 40% o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia… Tem expectativa de que agora voltarão a investir mais em pesquisa?
Pois é. Os recursos foram cortados pela metade e está se fazendo agora das tripas coração, mas as tripas não constroem um coração. É preciso muito mais dinheiro para a ciência no Brasil. Inclusive para constituir uma rede de pesquisa de vírus. A gente conseguiu avançar na pesquisa do zika, mas ainda tínhamos recursos.
Pesquisadores e autoridades da área médica falam, diante desta pandemia, para nos prepararmos para o pior…
Então… Pois é. Isso é científico. É pesquisa, não é pessimismo. Nós da universidade temos projeções que isso vai durar mais dois a três meses. É muito duro. Com essa pandemia, fica claro também a fragilidade humana. Nos lembra que não há imortalidade. Nos conscientiza da nossa fragilidade. E é ela que nos impõe a buscar saídas, sermos mais solidários, valorizarmos a pesquisa, o estudo, a ciência, a medicina. E também nos questionar: quem vai cuidar de quem cuida? Todo dia temos notícias de médicos, enfermeiros, a linha de frente infectada.
Como essa linha de frente pode se proteger?
A gente está nesse estágio da pandemia agora, com vários médicos, inclusive infectologistas, infectados e com sintomas. Os serviços de saúde estão tomando uma medida, a meu ver, acertada neste estágio, que é a de proteger os profissionais mais velhos. Os mais jovens estão passando para a linha de frente e mesmo eles precisam ser testados pra Covid-19 o tempo todo. Os mais experientes, com mais idade, estão indo para a retaguarda.
Temos visto gente jovem também morrer de coronavírus…
Aumentamos a população idosa, mas ainda não chegamos a ter uma parte tão significativa como existe na Itália, Espanha e Reino Unido. Ainda somos um País jovem. Portanto, temos que ter, sim, preocupação com a população jovem. Inclusive pelos casos graves que vêm se confirmando com jovens aqui. Essa coisa de dizer que só é para isolar grupo de risco, idoso, etc, é uma bobagem irresponsável.
Bolsonaro tem sido contra isolamento social.
Aí é a tragédia elevada ao quadrado. Nós brasileiros tivemos o azar de ter um presidente da República como ele justamente no momento dessa tragédia sanitária. Bolsonaro vem mantendo uma indiferença moral em sucessivos pronunciamentos e entrevistas. Chega a dizer que pessoas vão morrer mesmo. São atitudes desumanas, irresponsáveis. Note que há mais pessoas nas ruas depois que ele se pronuncia. Nos estarrece, mas ainda esperamos que ele mude de posição.
Dos 27 governadores, alguns mudaram de posição também, como Wilson Witzel, do Rio. E a maioria afirma seguir “a ciência” para combater a Covid-19. Vê acertos?
É interessante essa união. Ações conjuntas ganham mais força. Estão certos em seguir com o isolamento. Pegue o caso do Rio, que você citou. Nosso governador (Witzel) é muito polêmico. No início, reagiu mal à pandemia, mas mudou de posição e começou a acertar, ao adotar o afastamento social e dar declarações públicas com base na OMS e no Ministério da Saúde. Já o prefeito Marcelo Crivella está muito mal nesse processo. Mandou abrir o comércio e diz que prefere ouvir autoridades religiosas do que autoridades científicas.
Quem são as pessoas públicas que estão contribuindo neste debate de enfrentamento à Covid-19?
O Drauzio Varella, por exemplo, é um ‘ministro da Saúde’ eterno. Médico extraordinário, humano. E que faz diferença num momento em que a informação correta pode salvar vidas. Esta não é uma ‘gripezinha’, definitivamente. Eu destaco também o papel que podem ter os ex-ministros da Saúde. Esses deveriam ser convocados para ampliar o debate, a busca de soluções e ações práticas. Tem o José Serra, o Saraiva Felipe, o José Gomes Temporão. Ou seja, gente de diversos partidos políticos. São pessoas com enorme capacidade de reflexão.
Como avalia o ministro Mandetta, que é médico?
Toma medidas acertadas, responsáveis, a meu ver. O Mandetta sair agora seria um desastre, mas há risco.
Embora cada país tenha sua realidade, em qual deles o Brasil pode se inspirar?
Podemos aprender com países cujos presidentes e primeiros-ministros estão liderando a implementação de medidas sanitárias e econômicas adequadas, como na França. O presidente Macron não hesitou em apresentar um plano, que não ficou só no papel, Ele destaca estratégias de distanciamento social que estão compatibilizadas com apoios sociais e financeiros tanto para a população bem como para empresas.
Que lições podemos tirar disso tudo?
Tivemos dois meses, entre a declaração da pandemia pela OMS e os primeiros casos de morte no Brasil. Mandetta acertou, por exemplo, em logo pedir decreto de emergência. Mesmo assim os recursos demoraram a chegar. Ações concretas, idem. Precisamos responder rápido. O auxílio emergencial tem que chegar, de fato, na mão do trabalhador para ele ficar em casa. E, de novo, precisamos do trabalho de base na área médica, do agente de saúde, da valorização do SUS. Defenda o SUS, a ciência, a medicina e tenhamos consciência da fragilidade humana.
Fonte: Estadão