*Por Fábio Lopes da Silva
“o horror, o horror”
Joseph Conrad, O coração das trevas
A posição de diretor de centro dá a quem a ocupa um posto de observação privilegiado de tudo o que há de sublime e miserável na UFSC. Ao mesmo tempo em que se podem testemunhar incríveis gestos de bravura, desprendimento, elegância e inteligência, fica-se à mercê do que existe de pior e mais baixo na instituição. A direção de centro é a lanterna dos afogados, a última esperança de pessoas que não têm a quem mais recorrer quando outros setores não funcionam ou os direitos e informações que deveriam estar franqueados aos cidadãos em busca de algum serviço na Universidade não são adequadamente garantidos.
Há algum tempo, tenho notado que a balança entre as virtudes e defeitos da UFSC tem claramente pendido para o lado sombrio da Força. Na semana passada, no entanto, as coisas atingiram um patamar inédito quanto ao que um diretor de centro e seus assessores precisam suportar em matéria de degradação de valores e comportamentos na Universidade. Refiro-me ao que ocorreu em torno de um grave incidente acontecido nas dependências do CCE. Imagino que todos saibam do que estou falando, dada a ampla repercussão do caso. Não preciso nem posso entrar em detalhes a respeito da natureza do fato em questão.
A cena a que me reporto seria, em qualquer circunstância, dura de se ver. Mas o show de horrores que se desenrolou ao redor dela no CCE foi ainda mais especialmente chocante. Na hora da intercorrência, estudantes usavam computadores e internet em mesas públicas a menos de dez metros dos urros de dor e desespero da vítima. Nenhum deles esboçou qualquer reação ou mesmo tirou os olhos das telas enquanto tudo acontecia. Era como se a mais profunda normalidade vigorasse na Casa. Precisamos intimá-los a sair, para que, um pouco contrariados, se evadissem do local e permitissem que a polícia e os profissionais de saúde chamados para o atendimento pudessem trabalhar em paz.
No auditório ao lado da ocorrência, um evento acadêmico acontecia – e continuou a acontecer. Era absolutamente perturbador ouvir a voz monótona do palestrante ressoar só a uns poucos passos de um ser humano em frangalhos.
Docentes tentavam se aproximar de nós para exercer sua curiosidade mórbida ou – pasmem! – perguntar aos nossos técnicos alguma coisa a respeito do andamento de processos burocráticos do interesse deles.
Jovens de celular em punho esperavam algum lance espetacular, a fim de publicar vídeos nas suas redes sociais e, como se diz atualmente, gerar engajamento.
And so on.
Quando tudo terminou – inclusive o tal evento acadêmico –, ouvimos de relance uma pessoa que deixava o auditório lamentar que aquilo tudo transcorria “justo no dia em que estamos recebendo um professor alemão”.
A cereja do bolo veio no encerramento dos trabalhos: enquanto os policiais – vistos frequentemente como vilões –se abraçavam emocionados em comemoração ao sucesso da operação, uma colega, montada no salto 21 de sua grandeza moral, procurava entre os presentes adeptos para seus protestos contra a presença da PM no campus.
Cheguei em casa exausto. Tanta insensibilidade e desumanidade – no momento mesmo que as pessoas mais alardeiam nas redes sociais sua empatia e solidariedade por qualquer causa que esteja a uma distância suficientemente segura delas – doeram “da flor da pele ao pó do osso”, como na canção de Wisnik imortalizada por Elza Soares. Por um segundo, pensei pela primeira vez em renunciar ao meu cargo. Mas aí me veio à cabeça a ideia de que tudo isso um dia haverá de passar, e – em nome daquelas a quem Pelé um dia chamou de “criancinhas do Brasil” – segui em frente.
*Fábio Lopes da Silva (Diretor do CCE)