Por Joel Pinheiro da Fonseca
Não precisava do presidente do Grupo Eurasia eleger Bolsonaro como o líder mais ineficaz de todo o mundo em meio à crise do coronavírus. Para nós, brasileiros, isso já está evidente.
Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva. A ajuda de R$ 200 mensais a trabalhadores informais, irrisória (mas melhor do que nada), anunciada semana passada, ainda não foi detalhada.
A MP 927, publicada no domingo (22), teve de ser revogada pelo próprio governo, pois permitia que empresas mandassem os funcionários para casa por quatro meses sem salário. O ministro da Saúde tem que vir diariamente a público desmentir o presidente: a gripe é séria; não compareçam às igrejas; não tomem hidroxicloroquina.
Nada disso é por acaso. Uma característica do populismo é a negação tácita de que exista uma realidade objetiva. Não há fatos duros, há apenas diferentes narrativas e argumentos que podem ser usados para avançar ou atrapalhar um projeto de poder.
Vencendo a guerra de narrativas, isto é, conquistando os corações dos eleitores, tudo fica bem. Mesmo um vírus novo não é um problema que exija solução técnica; ele é fruto de alguma conspiração que precisa ser apontada e combatida no plano retórico. Deu no que deu.
O lado bom é que a inépcia presidencial está tendo o efeito ideológico contrário: a restauração da sanidade e do bom senso. As pessoas estão acreditando nas instituições novamente. O “sistema” —ciência, universidade, jornalismo profissional—, com todos os seus problemas, ainda é preferível aos palpites dos pilantras e charlatões que buscam substituí-lo.
No momento de necessidade, quando a vida está em jogo, a maioria do povo brasileiro quer informação confiável. Prefere as notícias de jornal ao youtuber histriônico. Dá ouvidos antes a um cientista do que à mensagem de um anônimo no WhatsApp ou ao papo furado de Bolsonaro no programa do Ratinho.
Isso não é pouca coisa. Uma pandemia como a da Covid-19 traz consigo enorme potencial para o nacionalismo. Por muito pouco não vimos uma guinada para a xenofobia, o ódio à China e à defesa do fechamento perpétuo das fronteiras. Se nossos populistas fossem um pouco mais competentes, esse seria o caminho natural.
A economia globalizada elevou o padrão de riqueza mundial a níveis inéditos. Ao mesmo tempo, globalizou também os riscos: desigualdade, aquecimento global, pandemias.
Há duas respostas possíveis: abandonar a globalização, o conhecimento e o progresso e se fechar no nacionalismo nostálgico e autoritário. Ou então aceitar que à globalização econômica precisa corresponder a cooperação política internacional.
O risco de uma pandemia global já era conhecido por cientistas, que alertaram as autoridades nacionais em vão por anos. Quando chegou, cada um olhou para seu próprio umbigo, demorou a agir e agora lidamos com as consequências.
O projeto bolsonarista de globalização (trocas econômicas internacionais) sem “globalismo” (acordos e órgãos internacionais de regras e cooperação) não para em pé. É preciso ter os dois ou nenhum.
A ciência, assim como o comércio, não conhece fronteiras e convida à cooperação universal. Coloca a realidade objetiva acima dos interesses de lideranças políticas. Essas ou se curvam à natureza para melhor governar, ou pagarão o preço por fingir que ela não existe. Eis que um pequeno vírus pode derrubar um projeto de tirano.
Economista, mestre em filosofia pela USP, colonista da Folha