Por Fábio Lopes da Silva*
Na semana passada, a PUC-Rio, minha alma mater, foi parar nas manchetes dos grandes veículos de imprensa e nos trending topics das redes sociais. O motivo? Um conturbado debate acadêmico sobre os conflitos no Oriente Médio. Ao longo do evento, jovens sionistas intepelaram um dos convidados, o Prof. Michel Gherman, que, sentindo-se desconfortável, acabou interrompendo sua apresentação e se retirando.
Em entrevista posteriormente concedida ao canal UOL Notícias, o Prof. Gherman se disse chocado com a maneira como foi tratado pela plateia e atribuiu os protestos dos estudantes ao clima de ódio e ressentimento patrocinado pelo governo Bolsonaro. “Vi naquelas pessoas os olhos do fascismo”, completou ele, em tom dramático. A matéria que acompanha a entrevista menciona agressões perpetradas contra os debatedores, assim como uma tentativa de inviabilizar a discussão de ideias.
Não há por que preliminarmente duvidar das queixas do colega nem do conteúdo da reportagem. O fato, contudo, é que o único registro que se tem do evento – ou pelo menos o único a que tive acesso – é um vídeo de cerca de um minuto e meio em que uma moça se dirige ao Prof. Gherman de modo notadamente comedido e respeitoso. Se há alguém indelicado e agressivo na cena, tal é a docente que coordena os trabalhos, cujo nome desconheço. Contrariada, ela interrompe abruptamente o comentário da menina e, ato contínuo, passa a palavra a outra pessoa da assistência. Mas não é a exasperação nem a deselegância da professora o que quero abordar em minha análise do vídeo. A mim o que realmente importa são os termos em que a discussão entre a jovem e ela transcorre. Diz a estudante que “Prof. Gherman não nos representa”, ao que a professora responde que ele não estava ali para representar ninguém mas para apresentar as próprias ideias. Em tom peremptório, a professora arremata que não iria admitir que se usasse o evento para fazer política, uma vez que se tratava de um debate acadêmico.
Curioso: a aluna sionista invoca a ideia de representatividade, um conceito criado e acalentado pelos progressistas, mas que, naquele contexto específico, foi rejeitado pela professora – certamente uma progressista – em nome da afirmação do indivíduo, isto é, do heroi das narrativas liberais. Como se não bastasse, a professora não apenas acusa a aluna direitista de politizar o evento como remarca a diferença entre o acadêmico e o político, uma distinção que a esquerda justamente costuma rejeitar mas que a direita, por seu lado, considera necessário restabelecer.
Fala-se muito em polarização da sociedade brasileira, e não é que o diálogo em questão não expresse isso. Mas o que mais chama a atenção é o fato de que, embora a professora e a aluna permaneçam em pé de guerra, ambas se entregam ao embate recorrendo a argumentos que, em princípio, pareceriam muito mais afeitos ao discurso do adversário do que ao delas próprias.
Não se pense que digo essas coisas para indicar em seguida que um acordo entre as partes seria muito mais viável do que os contendores estão dispostos a admitir. Longe de mim repisar o topos de que adversários têm muito mais em comum do que imaginam, como se um pouco de generosidade e escuta mútua bastassem para dirimir os conflitos. Minha conclusão é bem outra: o que o contencioso entre a professora e a aluna do vídeo revela é a falta de convicção dos contendores. E quero aqui argumentar que é precisamente essa falta de convicção – e não a suposta instransigência das partes envolvidas – o maior obstáculo aos debates a que temos assistido.
O problema de fundo é anterior à tal polarização de que, há algum tempo, tanto se fala. O problema de fundo dos conservadores não é a esquerda, assim como o problema de fundo dos progressistas, ao contrário do que pensa o Prof. Gherman, não é o fascismo. É a incapacidade – presente em ambos os lados – de segurar a onda, de aguentar a barra quando, nas discussões, a chapa esquenta. É a nossa incapacidade de não fugir da raia, seja nos retirando do fogo cruzado, seja – coisa muito pior – renunciando às próprias ideias. O problema de fundo não está em nos entrincheiramos em nossas posições mas, antes, em defendê-las sem o mínimo de tenacidade. O problema de fundo é que, na primeira oportunidade e ao sabor das conveniências, progressistas e conservadores sacrificam suas proclamadas profissões de fé e passam a defender até mesmo o oposto do que, no minuto anterior, diziam pensar. O problema de fundo é a falta de seriedade e honestidade intelectual.
Não estamos na noite do fascismo. A noite em questão é outra: aquela mais proverbial e prosaica em que, como se repete por aí, todos os gatos são pardos.
*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE/UFSC