Estudo da Faculdade de Direito da USP analisou a governança corporativa e a diversidade racial em empresas brasileiras de capital aberto
O estudo intitulado “Governança Corporativa e Diversidade Racial no Brasil: um Retrato das Companhias Abertas” mostrou que lideranças corporativas de empresas de capital aberto se mantêm desiguais para profissionais pretos e pardos. Formalmente chamadas de Sociedades Anônimas (S.A.), registradas na Comissão de Valores Mobiliários, empresas de capital aberto são aquelas que possuem valores mobiliários (ações ou debêntures) em leilões na Bolsa de Valores ou no mercado de Balcão, podendo captar recursos e investimentos do público geral.
“A governança das companhias abertas brasileiras reforça determinadas características da nossa estrutura social, profundamente marcada por traços patriarcais e racistas”, afirma o professor de Direito Comercial, Carlos Portugal Gouvêa, autor da pesquisa desenvolvida na Faculdade de Direito (FD) da USP, entre janeiro e maio de 2021, e publicado ano passado na revista Social Science Research Network, do grupo Elsevier. A análise integra sua tese de livre docência, chamada A Estrutura da Governança Corporativa, em que buscou compreender aspectos da sociedade que impactam as lideranças corporativas. A tese deu origem a um livro de mesmo nome, e está disponível neste link.
O estudo reuniu dados detalhados de 15% da amostra de 442 empresas brasileiras de capital aberto, utilizando formulários, balanços do perfil profissional nos sites das empresas e informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita entre 2012 e 2019 pelo IBGE. Trata-se de uma análise da diversidade racial existente nos cargos de membro do conselho de administração, de diretor presidente e de diretor financeiro. A revisão de dados teve como base a heteroidentificação nos moldes de comitês antifraude de ações afirmativas, isto é, uma busca particular de fotos e registros em redes sociais para verificar se a autoidentificação feita pelos profissionais estava de acordo com os dados das companhias.
A comparação das amostras demonstrou que 0,00% dos cargos dos conselhos de administração pesquisados eram ocupados por pessoas pretas, no período analisado, e que apenas 1,05% deles eram ocupados por pessoas pardas. Isso mostra que a chance de uma pessoa branca ocupar cargos de liderança é 58 vezes maior em comparação a uma pessoa não branca. Nos cargos de diretor presidente e diretor financeiro não foram identificadas pessoas pretas ou pardas.
De acordo com Gouvêa, os resultados impactam a perspectiva de crescimento desses profissionais, uma vez que a possibilidade de ascensão para altos cargos de gestão aparenta não estar dentro de sua realidade. Além disso, há uma perda significativa de produção em companhias que apresentam esse perfil discriminatório.
Políticas excludentes
Gouvêa observou um crescimento nas companhias ao redor do mundo para pautas de diversidade e comportamentos éticos. Segundo o pesquisador, novas metodologias governamentais foram aplicadas em prol de objetivos sociais, como os princípios ESG – termo utilizado para se referir a práticas de governança ambiental, social e corporativa, do inglês Environmental, Social, and corporate Governance – que reforçam a sustentabilidade em conjunto com bons resultados financeiros. Além disso, também houve influência dos movimentos sociais Black Lives Matter, em oposição à violência racial, nos Estados Unidos, e Me Too, contra assédios e agressões sexuais, que repercutiram mundialmente.
Por outro lado, a história brasileira é marcada pela exclusão e segregação racial pós-abolicionista, de forma que esses traços interferiram na formação das primeiras companhias e, consequentemente, em sua gestão. “Os países que fizeram a revolução industrial, como Inglaterra, França, Alemanha e, posteriormente, os Estados Unidos, tinham suas atividades comerciais focadas no financiamento de grandes companhias, diferentemente do caso brasileiro, que estava em uma sociedade agrária e exportadora. Isso permitiu que os detentores de terra brasileiros participassem das atividades comerciais e industriais sem muita concorrência”, ressalta Gouvêa.
Ao Jornal da USP, o professor comenta sobre as leis Eusébio de Queiroz, o Código Comercial e a Lei de Terras, todas de 1850, como políticas excludentes que afastaram pessoas negras da ascensão social. “Elas fizeram parte de um modelo econômico que permitia a participação na atividade comercial por escravos então libertos, mas nada muito significativo, para dificultar sua ocupação de terras e a conquista de títulos”, explica ele.
“O resultado desse processo foi justamente a perpetuação de uma sociedade segregada, semelhante a do período da escravidão”, afirma Gouvêa. “As companhias brasileiras, sendo controladas apenas por pessoas brancas, infelizmente, reproduzem a estrutura das casas-grandes dos engenhos de cana-de-açúcar”, complementa.
Expectativa no futuro
A dificuldade de alcance a altos cargos de gestão também afeta a perspectiva de crescimento para profissionais pretos e pardos. “Muitas vezes, acontece de famílias com pessoas negras se questionarem se há possibilidade de seus filhos se tornarem empresários, por falta de referências”, exemplifica Gouvêa. “Gera-se um desestímulo em toda a sociedade para quebrar essas barreiras. Eventualmente, se houvesse o esforço em aumentar a diversidade nas companhias, as pessoas poderiam orientar sua capacidade para atingir esses objetivos, acreditando que eles são possíveis”, complementa.
O professor de Direito Comercial avalia o cenário atual das empresas brasileiras de capital aberto como uma desvantagem individual e corporativa diante das limitações raciais. “Trata-se de uma dupla perda: as pessoas não conseguem apresentar todas as suas potencialidades, muitas vezes chegando a sair das empresas por não se sentirem confortáveis; enquanto a companhia desperdiça possíveis talentos que poderiam mudar a direção da empresa e conseguir chegar a novos públicos”, conta Gouvêa.
Gouvêa cita exemplos de empresas que cresceram a partir da diversidade étnico-racial. “A Nike, empresa estadunidense de calçados, roupas, e acessórios, tinha uma produção voltada majoritariamente para pessoas brancas. Por volta da década de 1980, ela começou a produzir materiais pensados na comunidade negra, como produtos de basquete usando a imagem do jogador Michael Jordan. A partir disso, ela expandiu consideravelmente seu público e passou a comercializar com outros países que admiravam o jogador”, explica ele. “Se incorporássemos a diversidade que é natural no Brasil, e que representa melhor o mundo, nossa capacidade de comercializar internacionalmente seria muito maior, teríamos uma vantagem competitiva”, complementa.
Segundo o pesquisador, é necessário termos políticas de ações afirmativas nas universidades, juntamente com as ações ético-raciais nas companhias, pois “não adianta ter políticas de inclusão nas empresas, sem pessoas qualificadas para preencher os cargos”, afirma ele. Gouvêa lembra que o sistema de ensino da Finlândia, um dos mais igualitários do mundo, teve como base os conhecimentos do educador brasileiro Paulo Freire.
Fonte: Jornal da USP