“Muito precisa ser feito para que alcancemos uma educação pública de qualidade para todas as pessoas”, afirma Cláudia Galian
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo obrigatório nos currículos dos sistemas e redes de ensino brasileiras. A BNCC é aplicada no território nacional em propostas pedagógicas de escolas públicas e privadas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, níveis da educação básica.
Prevista na Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e o Plano Nacional de Educação de 2014, a BNCC estabelece que todas as políticas educacionais devem tomá-la como referência no que se refere à produção de materiais didáticos, formação inicial e continuada de professores e mecanismos de avaliação da aprendizagem dos estudantes da educação básica, por exemplo. Sua elaboração passou, ainda, por audiências públicas de caráter consultivo por todo o país.
O documento na prática
Cláudia Galian, professora da Faculdade de Educação USP, afirma que a Base Nacional Comum Curricular funciona como o documento base ao qual todas as propostas curriculares elaboradas por Estados e municípios devem se adequar. “Mas não só isso, ela também propõe uma sequência para o ensino e o nível de aprofundamento a ser atingido em cada etapa da escolarização”, adiciona.
Publicados pelo então Ministério da Educação e do Desporto (MEC) em 1997 e 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais se apresentavam como referências adotadas arbitrariamente pelos Estados e municípios. Com a instituição da BNCC por instrumentos legislativos, todas as 26 unidades federativas e o Distrito Federal se alinham nas mesmas diretrizes de projeto educacional.
No entanto, a oficialização de parâmetros nacionais não deixa de apresentar contestações. A professora relembra a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as diretrizes nacionais e institui a Base Nacional Comum para a formação inicial de professores para a educação básica. Nas palavras de Cláudia, a medida “altera a natureza da formação de professores e confere centralidade nos cursos de licenciatura ao estudo dos conteúdos a serem ensinados na base”.
Ela argumenta que, com a resolução, parte significativa dos cursos de licenciatura se destina à busca por metodologias que facilitem a sua implementação, em detrimento de disciplinas relevantes para a formação educacional e pedagógica de profissionais, por serem consideradas excessivamente teóricas pelo CNE. “Trata-se de uma mudança amplamente rejeitada pelo campo da educação, mas que, sob a pressão de setores interessados, foi novamente aprovada, por unanimidade, pelo conselho e aguarda a homologação”, conta.
“Ela tem limites evidentes”
Na apresentação da BNCC, o Ministério da Educação garante que o documento é valioso para reafirmar o compromisso de todos com a redução das desigualdades educacionais no Brasil e a promoção da equidade e da qualidade das aprendizagens dos estudantes brasileiros. A professora Cláudia avalia que, pela urgência com que foram encaminhadas as discussões e pelo tratamento conferido às manifestações sobre ela, não se conferiu consideração suficiente às escolas e seus agentes, ao que já se faz e principalmente às condições desiguais sob as quais professores e estudantes desenvolvem o seu trabalho.
Desde sua implementação, em 2017, a base recebeu modificações na carga horária do estudantes, inserção de tecnologias, modificação de metodologias e espaços de professor e aluno. Nos mais de cinco anos depois, o Brasil passou por dois presidentes da República, cinco ministros da Educação e uma pandemia que alterou as dinâmicas educacionais. A professora coloca tais obstáculos em análise: “O tempo nos mostra que um novo documento curricular não tem o poder de sozinho resolver os problemas da educação de um país. Embora a Base Nacional Curricular tenha sido apresentada como a panaceia para todos os problemas educacionais acumulados ao longo do tempo, ela tem limites evidentes”.
A pandemia de covid-19 marcou um período em que as desigualdades profundas se explicitaram, de modo que o campo da educação tenha sido atingido. “Muito precisa ser feito para que alcancemos uma educação pública de qualidade para todas as pessoas”, indica Cláudia. Na sua visão, a base curricular tem a obrigação de compreender a educação escolar como uma questão complexa que exige soluções igualmente complexas e abrangentes, além de definir escolhas com uma lógica temporária e de criticidade.
“Esses documentos são fruto de determinadas configurações de poder e, portanto, sempre tenderam a favorecer ou desfavorecer determinados grupos. A criação da BNCC não era o único caminho possível. Na verdade, foi o caminho possibilitado pela configuração de poder vigente que resultou num documento explícito que foi acordado entre grupos de interesses muito distintos”, conclui.
Fonte: Jornal da USP