Por Maria Paula Dallari Bucci
O governo lançou neste mês consulta pública sobre o projeto Future-se, para as universidades e os institutos federais. Alguns acreditam que a proposta, cuja primeira versão é de julho de 2019, seria meritória por incentivar a cultura de doações privadas, “quebrando a barreira entre mundo acadêmico e empresas”. Sem discordar de que deve ser melhorada essa aproximação (como reconhece a Constituição federal, ao mencionar a extensão universitária, no artigo 207), a proposta do governo tem problemas profundos.
Em primeiro lugar, o texto apresentado em janeiro continua sendo essencialmente contrário à autonomia universitária, na medida em que as contrapartidas oferecidas pelo MEC à adesão de cada universidade ou instituto federal são vagas promessas de prioridade em bolsas da Capes (significativamente reduzidas em 2019, cabe lembrar) e de recursos adicionais, sem informação ou compromisso com valores (artigo 6o).
Aliás, o governo Bolsonaro não preza a autonomia, afrontada por outra proposta, que altera o processo de eleição de reitores. Editada na véspera do Natal, a Medida Provisória 914/2019 previu a obrigatoriedade do voto num único candidato (artigo 3o, II), entrando em assunto das regras internas de cada instituição. Mas essa invasão parece encontrar sentido para o governo na medida em que dificulta a elaboração de listas tríplices com nomes de oposição ao Ministério da Educação. Como se sabe, o presidente tem nomeado reitores colocados em segundo ou terceiro lugar nas listas, contrariando a prática anterior de prestigiar a escolha da comunidade universitária, nomeando o primeiro colocado.
Assim, ainda que se possa reconhecer algum esforço do governo para responder às críticas, o ambiente para eventual deliberação sobre a adesão ao Future-se é de grande apreensão. O programa traz uma complicada teia de instrumentos jurídicos que, a rigor, poderiam ser tratados de maneira mais simples e objetiva, com base na legislação já existente e nas práticas que vêm sendo adotadas há anos pelas universidades públicas em suas parcerias, caso seu objetivo fosse apenas a enunciada obtenção de resultados.
Mas há um intuito privatizante, nas formas e nos objetivos, que envolve a tentativa do governo de se descomprometer com o financiamento público, por trás de algumas das invenções mais problemáticas. Um exemplo disso é a “concessão do direito de nomear”(artigo 22). Na versão original falava-se em naming rights, à semelhança dos estádios de futebol que levam o nome do patrocinador.
Alguns aplaudiram a iniciativa, comparando-a com práticas adotadas em instituições americanas. Se conhecessem o texto, provavelmente seriam mais críticos. Previa-se, literalmente, trocar esses direitos pelo “preço de mercado da imagem da Ifes” (artigo 15, parágrafo único, da proposta original: “A autorização deve ser precedida de estudo que demonstre que o preço de mercado da imagem da Ifes e a proposta apresentada pela pessoa física ou jurídica representam ganhos para a instituição”).
Nenhuma instituição, no Brasil como no exterior, cogitou de venda da marca em troca de patrocínio. A transposição dessa prática do mundo esportivo para o ambiente universitário consistiria em distorção que não foi cometida nas instituições americanas imaginadas por quem redigiu a proposta. O que existe nessas instituições são cátedras, isto é, áreas ou projetos acadêmicos apoiados mediante condições previamente pactuadas com a universidade. Ou, como se faz em algumas universidades públicas, prevê-se o agradecimento pelas doações em placa sóbria, prática semelhante ao que se encontra no Insper.
Não se trata, nem de longe, de venda, ou, como se diz no artigo 22 da versão atual, de “exploração econômica de nome ou de marca, em contraprestação de recursos financeiros ou não, desde que economicamente mensuráveis”.
Mesmo do ponto de vista empresarial, essa proposta seria insustentável, uma vez que comprometeria em seu cerne a credibilidade acadêmica, substrato de um hipotético “valor comercial” da marca. O nome de uma instituição de educação e pesquisa é fruto de trabalho de toda a comunidade acadêmica. Como anotava o Banco Mundial nos anos 1990, as “universidades de classe mundial” tinham em comum financiamento abundante e um elemento humano de ótima qualidade, além de autonomia, tudo convergindo para a excelência acadêmica. Assim, a “marca valiosa” de uma universidade é resultado de um trabalho cumulativo, de muitos anos, que envolve não apenas aquela comunidade, mas um suporte regular na sua base e no entorno. Esse valor pode ser rapidamente consumido quando se perde a orientação da instituição, como conjunto. A quebra da unidade entre ensino, pesquisa e extensão, a hiperprivatização, a falta de equilíbrio na busca de produtos ou processos vendáveis, tudo isso pode induzir à perda do “valor da marca” da instituição.
Como afirmou Reginaldo Moraes em Mitos e verdades sobre o financiamento do ensino superior nos Estados Unidos (artigo em Future-se? A universidade pública brasileira entre impasses e promessas, organizado por Salomão Ximenes e Fernando Cássio, disponível em https://cutt.ly/Crqn7or), “a injeção de recursos públicos (estaduais, federais, locais) continua sendo decisiva para o funcionamento da pirâmide acadêmica das escolas superiores norte-americanas, inclusive de seus braços privados. (…) Exemplos (como os americanos) devem ser estudados, (…) para apreender com eles, contextualizando-os. Isso talvez nos ajude a investigar quais são os substitutos funcionais que podem emular alguns de seus sucessos, bem como evitar alguns de seus problemas e obstáculos”.
Professora da Faculdade de Direito da USP, foi secretária de educação superior (2008 a 2010) e consultora jurídica do MEC (2005 a 2008)