Por André Barata
A acção política dos poderes públicos no Brasil, sobretudo desde a eleição de Bolsonaro há um ano, contra as disciplinas das humanidades tem que ser entendida como um ataque. É importante declará-lo, com esta referência explícita ao Brasil, para deixar claras quais as linhas mestras por que é perpetrado, mau grado outras dimensões que lhe conferem contexto.
Num primeiro plano, regista-se uma asfixia financeira dirigida às actividades relacionadas com a criação e transmissão do conhecimento, com os cortes orçamentais, ou os “contingenciamentos” (que mais não são do que a versão com pré-aviso dos primeiros). Obviamente, a contenção orçamental poderia ser determinada pela necessidade, mas passa a ser uma escolha política quando os cordões da bolsa são fechados para certos domínios em detrimento de outros. O que em si mesmo não é um problema, pelo contrário, é o exercício regular de uma vontade política, mas desde que seja uma escolha politicamente escrutinável, como deve ser sempre em democracia. Mas esta é apenas a superfície do problema. Uma segunda asfixia financeira tem sido dirigida às humanidades, e mais em particular à Filosofia e à Sociologia. Quando se entra na análise das razões desta asfixia, revela-se quão sério, sistémico e profundo é o ataque às humanidades.
Apresentam-se, em seguida, quatro tipos de razões, vizinhas mas distintas, e que são reiteradamente atestadas em declarações dos decisores políticos com mais elevada responsabilidade governativa no Brasil, o ministro da Educação Abraham Weintraub e o próprio presidente.
Em primeiro lugar, as humanidades seriam áreas científicas de baixo, difuso e demorado retorno, não configurando, portanto, um bom investimento de capital.
“O ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina.” (tweet de Jair Bolsonaro, 26 de Abril de 2019)
Poder-se-ia aceitar este facto e dele inferir não um desinvestimento, mas, pelo contrário, uma excelente razão para investimento público. Pautar todo o investimento pelo retorno imediato, não distinguindo um tempo próprio dos investimentos públicos, por regra mais lento, revela uma descapacitação e empobrecimento dos poderes públicos em matéria de decisões de investimento. Esse é o resultado da adesão acrítica a uma forma única de gestão de interesses públicos, a saber, a regulada pela ideia de retorno palpável num curto prazo de tempo, precisamente a que menos carece de investimento público.
A subordinação do público e da sua organização à lógica mercadorizada de todos os bens tem uma motivação ideológica. E a impaciência governativa pelo retorno é bem o sinal de uma incapacidade de pensar e agir nos termos de uma razão pública.
Em segundo lugar, as humanidades em geral, e a filosofia em particular, seriam de tal maneira ineficientes do ponto de vista de uma lógica de retornos que, excluídas de uma racionalidade de investimento, só poderiam ser publicamente legítimas como serviço pago por quem quer dele fruir, nos termos pois de uma relação comercial privada, publicamente neutra, para assim não comprometer o superior interesse público, uma vez entendido este como interesse de contribuintes investidores.
“A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.” (tweet de Jair Bolsonaro, 26 de Abril de 2019)
Paradoxalmente, a colonização do bem público pela lógica privada tende a subsidiar com recursos públicos o que tem retorno rápido palpável e a entregar a uma lógica cruamente privatística o que não tem outro retorno senão de forma difusa e, por regra, inexprimível em termos de riqueza contabilizável e acumulável. O lema poderia ser: “investir publicamente no que funciona bem na forma de mercadoria privada; desinvestir publicamente no que não funciona bem nessa mesma forma”. Que é mais ou menos o que reza o slogan: “privatizar os lucros, socializar os prejuízos”.
Terceiro, além de não serem prioritárias, na verdade até negligenciáveis de acordo com uma certa perspectiva enviesada de interesse público, as humanidades são conotadas com um certo interesse de classe. Não é apenas a racionalidade económica a ditar que os estudos de filosofia devem ser pagos, mas também a presunção, sem nenhum fundamento, de que é uma elite relativamente endinheirada quem mais quer frequentar esses estudos e que, também por isso, por poder pagar tal inutilidade, deve mesmo pagá-la do seu bolso.
Apesar da ideia subjacente de que há um privilégio, é bom notar que interesse de classe aqui não significa a divisão de classes entre trabalhadores e aqueles que podem viver da reprodução do capital acumulado. Significa antes a divisão social entre os que subsistem e os que não subsistem na dependência dos recursos públicos, negligenciando-se a diferença substancial entre quem é simplesmente funcionário ou representante público, vivendo de um salário, e quem se envolve em práticas de corrupção, uns e outros sob a mesma suspeita. Uns e outros não se diferenciam pela desigualdade mas pela comum suspeita sobre quem viva, legitimamente ou não, de recursos públicos.
Ironicamente, ou de maneira amargamente paradoxal, os estudos de filosofia que tão pouco retorno contabilizável dão são bastante procurados por quem não dispõe de especiais rendimentos, ao passo que as atividades com maior retorno contabilizável são as que mais atraem quem dispõe de rendimentos.
Mas todos estes três tipos de razões ainda não apontam verdadeiramente ao coração das humanidades. Falam de racionalidade económica e de uma certa composição social a propósito das humanidades, nada mais. Só as deixam morrer, à boa maneira da biopolítica. Mas há obviamente um tiro ao coração sempre subentendido. Esse é o nosso quarto ponto.
As humanidades são um nome que condensa muitas causas e uma visão de mundo em grande medida inversa à do poder em exercício no Brasil. É a desigualdade de género atentamente considerada pelas ciências sociais e humanas, são os ativismos em torno de minorias, das causas ambientais, da crítica ao estádio actual do capitalismo, são os professores do ensino médio que levam na sua cartilha pedagógica questões cívicas que o poder treslê como ideologia, são as disciplinas de ensino médio que estimulam competências de análise social e de reflexão crítica.
E este ponto é o mais importante porque também denuncia como o neoliberalismo de Bolsonaro, ou dos seus seguidores mais estruturados, é sobretudo de reacção e não de convicção, de colonização do interesse público pelo interesse particular. Nem sequer acredita genuinamente que o privado faça melhor do que o público, como um libertarian convicto. Se não está disposto a deixar ao público o que é eminentemente público é apenas porque não serve os seus interesses e os interesses que representa.
Mas que têm as humanidades de tão ameaçador para se tornarem um adversário político com magnitude maior do que a da corrupção ou a da violência no discurso político? A violência no Brasil mata acima de 50 mil pessoas por ano, na sua esmagadora maioria homens muito jovens e racializados, números frios que comparariam com as piores guerras convencionais se não fossem tão seletivos, que comparam melhor com uma chacina civil, ou pior ainda, com uma limpeza demográfica.
Mas, longe disto, em Nova Iorque, ao lado do seu homólogo norte-americano, as prioridades que o presidente definiu foram outras – “O Brasil e os Estados Unidos também estão irmanados na garantia das liberdades, no respeito à família tradicional, no temor a Deus, nosso Criador, contra a ideologia de gênero, o politicamente correto e as fake news”. Na lista dos adversários, falta um, mas sendo tão transversal presume-se estar tacitamente assumido: as humanidades.
O que se passa no Brasil não é estranho a uma crise das humanidades que vem de latitudes do hemisfério norte. Talvez o Brasil se tenha deixado tornar a frente da experimentação de um desmantelamento das humanidades e de um ataque inédito que inegavelmente tem por detrás a cumplicidade ampla de uma tendência dos tempos, que será global pela sua extensão planetária, mas que, verdadeiramente, irradia do quadrante Ocidental do hemisfério Norte, das suas sociedades e instituições. Isto significa que sem a crítica a esta crise das humanidades e sem a compreensão desta articulação cúmplice não se explica o terrível sucesso do ataque às humanidades no Brasil de hoje e não se vislumbra como o confrontar.
Esta filiação, do ataque às humanidades no Brasil, numa crise das humanidades em geral, tem um nó que precisa de ser desatado e que é a persistência de uma relação de influência cultural de um só sentido, de representação de interesses intelectuais, mesmo que mascarados sob a forma de ideias e de causas. Trata-se de uma colonização bem presente, ainda que implícita e difusa, sem expressão jurídico-política, apenas tácita, e cuja fonte geográfica e cultural coincide exatamente com o que foi historicamente o Quadrante colonizador.
Desatar este nó significa reconhecer o que se sabia, de como na terra que se coloniza o ataque é sempre mais cru, disponível e literal do que na terra que coloniza. O Chile foi o laboratório experimental do neoliberalismo de Chicago antes de chegar às populações do Quadrante NO. Da mesma maneira, o Brasil arrisca a ser o laboratório experimental da erradicação de humanidades críticas e não funcionalizadas. Na verdade, configuram-se um e outro como duas filiais do consórcio laboratorial montado com vista à conformação global e total a um certo paradigma adverso à razão pública.
André Barata é filósofo e professor na Universidade da Beira Interior (Portugal). O artigo foi publicado em O Jornal Económico.