Em entrevista exclusiva para a Apufsc-Sindical, o novo pró-reitor de Pesquisa, Jacques Mick, fala da importância da produção científica na universidade, de como o baixo financiamento prejudica pesquisadores, além de apresentar um panorama geral do setor
O avanço da pesquisa produzida na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) fez com que a instituição subisse cinco posições no principal ranking de universidades da América Latina, o Times Higher Education Latin America University Rankings 2022, chegando ao sexto lugar entre as principais instituições do continente. Somente em relação à pesquisa, um dos aspectos avaliados para a formação do ranking, a UFSC avançou 12 pontos em relação ao ano anterior.
Conforme dados do Observatório UFSC, a universidade atualmente conta com 655 grupos de pesquisa registrados, com 2.468 linhas de pesquisa e 12.466 participantes. As áreas com mais grupos cadastrados são Ciências Humanas (128), Ciências Sociais Aplicadas (118), Ciências da Saúde e Engenharias, com 89 grupos cada. Aí estão incluídas pesquisas básicas e aplicadas, que extrapolam os muros da universidade e, direta ou indiretamente, geram benefícios a toda a sociedade.
No entanto, a produção científica na universidade também está ameaçada com os recorrentes cortes de recursos para o setor pelo governo federal. As notícias são preocupantes: mais da metade dos recursos que estavam previstos no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para serem investidos em pesquisa neste ano foram recentemente “bloqueados” pela equipe econômica do governo, sob a justificativa de evitar um estouro do teto de gastos. De um total de R$ 4,5 bilhões, apenas R$ 2 bilhões poderão ser efetivamente empenhados — uma redução de 55% na principal fonte de recursos para a ciência no país.
Além disso, existem cortes nos ministérios da Educação (MEC) e da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). No primeiro, o bloqueio chegou a R$ 1,6 bilhão – e pode aumentar com uma nova previsão do governo de cortes no Orçamento. Já o MCTI estava autorizado a empenhar R$ 6,807 bilhões, mas teve R$ 1,794 bilhão retido – ou “temporariamente impedido”, nas palavras da equipe econômica.
Na UFSC, os cortes de recursos pelo MEC passaram de R$ 12 milhões somente nos dois últimos meses. O orçamento de que a universidade dispõe hoje é insuficiente para encerrar o ano. Para tentar equilibrar as contas, os recursos da Pró-Reitoria de Pesquisa (Propesq) também entram no jogo. E há ainda os desafios de manter pesquisadoras e pesquisadores motivados em um cenário de escassez de recursos, incentivar o ingresso na produção científica e mostrar à sociedade a importância do trabalho produzido pela UFSC. Nesta entrevista à Apufsc-Sindical, o professor Jacques Mick, novo pró-reitor de Pesquisa, fala sobre estes aspectos e faz uma leitura do cenário.
Apufsc – Nos últimos meses, os cortes de recursos na UFSC passaram R$ 12,6 milhões e foram aplicados sobre as verbas de custeio, destinadas ao pagamento de despesas como água, luz e serviços terceirizados. Mas sabemos que têm sido feitos bloqueios e cortes de recursos não apenas pelo MEC, mas também no FNDCT e MCTI. Como esses cortes na ciência impactam na UFSC?
Jacques Mick – São muitas as variáveis relacionadas a isso. A primeira tem a ver com o montante absoluto de recursos investidos em ciências e tecnologia no Brasil, que tem caído continuamente. Se você leva em conta o peso da inflação, intensifica ainda mais a escassez de recursos com que a pesquisa opera hoje no Brasil. Para ter uma ideia, de acordo com dados registrados no Sipex, nós temos hoje na UFSC 3.180 projetos de pesquisa em andamento, e só 500 contam com algum tipo de financiamento. O primeiro dado objetivo é que 85% das nossas pesquisas não contam com financiamento ou não informam esse financiamento ao Sipex. Quando você vai olhar para esses 500, prevalece o financiamento de baixo valor: 50% dos projetos são financiados até R$ 100 mil, e outros 25% são financiados entre R$ 100 mil e R$ 500 mil. Então você tem de fato uma grande desigualdade no acesso ao financiamento a pesquisa na UFSC. É uma minoria que consegue ter financiamentos robustos. Nos projetos acima de R$ 1 milhão, só há 65 coordenadores.
Apufsc – E qual a origem desses financiamentos?
Jacques Mick – Todo tipo, exceto o que se reduz a bolsas. Em geral, o financiamento que se reduz a bolsas não é informado. Mas a maior parte desse valor, que hoje totaliza R$ 350 milhões, é também recurso público. Então é um mito que o setor privado financia algo substancial da pesquisa na universidade. Ele financia, mas é uma parcela pequena. Ainda, em tese, haveria muito espaço para criação de conexões mais estáveis e constantes entre o setor privado e a universidade.
Apufsc – Qual o impacto dessa escassez entre os pesquisadores?
Jacques Mick – A redução objetiva de recursos faz com que grande parte dos nossos colegas tenham que entrar em competição uns com os outros quando aparecem as escassas oportunidades. E aí acontece como nos editais recentes do CNPQ, em que você tem uma enorme disputa de gente da nossa universidade com outras. Você faz um projeto na ordem de R$ 250 mil, por exemplo, e o que você recebe é 20%. O primeiro efeito dos cortes é a ausência objetiva de recursos e o efeito que isso tem de rebaixar a expectativa dos pesquisadores e colocá-los em competição uns com os outros. O segundo é que o corte de recusos não vem sozinho, vem acompanhado de uma política de execução orçamentária errática. Isso fez com que ao longo dos últimos seis anos, o orçamento que a universidade começa o ano nunca é o orçamento com o qual termina, e ele vai sofrendo alterações, o que impede qualquer previsibilidade do ponto de vista administrativo. Nós temos na Propesq uma parcela pequena de recursos que advém do ressarcimento institucional dos recursos financiados, ou seja, uma parte desses projetos financiados recolhe ressarcimento institucional, outra parte não. Dessa parcela que recolhe, uma parte vem novamente pra Propesq. Então, em tese, nós teríamos um pequeno orçamento para administrar ao longo do ano, mas o primeiro problema é que num contexto de instabilidade financeira você não tem como prever e executar suas ações. Porque pode acontecer o que aconteceu nesse mês. Como nós tivemos o corte de mais de R$ 12,5 milhões, nós não temos orçamento para chegar a dezembro. Então o orçamento excedente da Propesq precisou ser destinado ao pagamento de bolsas, para assegurar que cheguem ao fim do ano. Sem os cortes, talvez eu pudesse ampliar o número de bolsas, ou investir em equipamentos. A primeira grande mudança que um futuro governo tem que fazer caso a sociedade brasileira tenha a sabedoria de interromper essa tragédia em outubro é dotar as universidades de previsibilidade orçamentária. Nós sabemos que não vai vir muito dinheiro, mas a previsibilidade já vai melhorar nossa vida. Outro conjunto de problemas que eu queria explicar é inspirado em uma fala muito irônica do Luis Fernando Verissimo: “onde há verba, há verbo”. Isso se aplica claramente à pesquisa. Num contexto de escassez de recurso público para financiamento da pesquisa, alguns de nossos pesquisadores tendem a ajustar seus projetos às disponibilidades de recursos disponíveis na praça. Ou seja, não necessariamente nossos pesquisadores estão pesquisando aquilo que querem ou aquilo que está na ponta dos desafios do conhecimento, mas estão pesquisando o que há dinheiro para ser pesquisado. Então, às vezes, você pega o recurso que está aqui disponível para fazer “a”, mas a equipe que está disponível para fazer “a” vai fazer também “b”, porque é importante. Por fim, o corte de recursos significa reduzir nossa capacidade de ter uma pesquisa avançada, de ter soberania, de ter desenvolvimento tecnológico e científico, de enfrentar os grandes problemas do nosso tempo. Qual é a capacidade que nós temos hoje, com o financiamento da ciência brasileira, de responder ao aquecimento global? De responder ao problema de variação da matriz energética? De responder à crise política? Tudo isso só agrava uma situação que já era complicada, porque o trabalho dos docentes no Brasil é muito exigido. Aqui os docentes precisam compartilhar essas atividades com uma série de questões de cunho burocrático. É um caminho de obstáculos em uma pista que precisaria estar livre. Quem está na gestão precisa lidar com toda essa complexidade de fatores. É preciso reduzir a burocracia, buscar mais recursos, estimular uma ação coletiva que permita a superação desses problemas.
Apufsc – Todos esses obstáculos impactam também na motivação dos pesquisadores para produzir?
Jacques Mick – Temos indicadores em todas as categorias na universidade de profundo impacto mental que combina a condição delicada de vida no contexto da pandemia, muito medo, muita ansiedade, essa situação política triste, absolutamente deprimente, agravada pelo fato de que a UFSC atua em um estado que não apenas do ponto de vista político foi muito bolsonarista, não posso assegurar que ainda é, como tem uma rede de suporte ao bolsonarismo que é atuante e que põe a universidade no centro do alvo. Então nossos colegas estão tendo que lidar com isso tanto no nível macro, quanto no nível micro. Tem gente que não entende muito bem o que a universidade faz e é particularmente vulnerável a essa linguagem de simplificação. Então, além das questões mais ordinárias de uma pasta como a Propesq, a gente sabe que precisa ter uma ação institucional mais robusta no sentido de tentar contribuir para que Santa Catarina reconstitua seu tecido democrático. Isso significa ter informação de qualidade, em primeiro lugar; espaço público para fazer o debate; e valorização das instituições. Santa Catarina não tem nada disso funcionando bem e a universidade tem uma responsabilidade que deve assumir.
Apufsc – Por outro lado, apesar desses ataques, nós vimos durante a pandemia o trabalho das universidades, da pesquisa, da ciência, ser valorizado e ganhar espaço na opinião pública, inclusive em relação ao trabalho feito na UFSC. Isso mudou a visão das pessoas em relação à universidade, ou não, muito ainda precisa ser feito para que seja valorizada?
Jacques Mick – A universidade dá uma contribuição fundamental à vida dos catarinenses, em várias frentes, o tempo todo. Seja no desenvolvimento de novos remédios, seja no desenvolvimento de novas técnicas de investigação sobre a saúde, que podem permitir diagnósticos precoces. Nós ajudamos a desenvolver um sorvete que facilita a quimioterapia e o tratamento das pessoas com câncer, nós ajudamos a desenvolver tecnologia que permite a criação de carros elétricos com autonomia, temos um dos principais polos de investigação de energia solar, temos um polo bastante ativo de reflexão crítica sobre as desigualdades no Brasil, especialmente a desigualdade de gênero, mas também de raça, nós temos pesquisadores extremamente competentes lidando com as características sociais, filosóficas e políticas desse momento que a gente tem agora. Tudo isso, direta ou indiretamente, mexe com a vida de cada catarinense. Mas como as pessoas se dão conta disso? Aí temos duas coisas que precisamos observar. A primeira é que a gente vive um contexto de transformações tecnológicas em que as próprias formas de saber estão mudando. Ninguém no mundo sabe dizer o quanto daquilo que as pessoas sabem vem do jornalismo, o quando é mentira, o quanto é verdade. Houve uma mudança significativa da forma de conhecer. Esse é um desafio da pesquisa em todo o ocidente. Ninguém consegue explicar satisfatoriamente porque houve um avanço de projetos autoritários em nações de democracia consolidada, inclusive. Isso pode estar relacionado às mudanças na forma de conhecer que produz um espraiamento de narrativas, de fontes. Nós vínhamos de um processo em que as fontes eram relativamente conhecidas: a maior parte das pessoas se informava pela televisão, uma parte menor pelo rádio e depois pelos jornais, no Brasil. Ao longo dos últimos anos, em todo o ocidente, essas mídias tradicionais têm uma importância cada vez menor, e hoje a principal fonte de informação das pessoas é essa coisa difusa de redes sociais. Em redes sociais cabe tudo, cabe o discurso da extrema-direita que não tem noção do que é a universidade, e cabe o cientista que vira um personagem do mundo pop falando coisas interessantíssimas sobre a universidade. O que a gente pode dizer sobre isso em Santa Catarina: que é o estado brasileiro com maior taxa de conectividade; que é o estado em que o desenvolvimento de tecnologia é muito avançado; temos uma mídia tradicional que se desmanchou ao longo das últimas décadas. É uma mudança muito dramática. Qual a nossa responsabilidade como universidade? Primeiro entender que há um desafio de linguagem. Nós precisamos melhorar nossa linguagem para atuar nesse ecossistema. Depois saber que a briga, no que diz respeito à informação de qualidade, tampouco está perdida. Se nós somos uma organização que pesquisa, e que pesquisa isso, inclusive, nós podemos avançar nessa área.
Apufsc – Você citou vários projetos de pesquisa muito relevantes feitos aqui na universidade, como os de energia solar, carros elétricos, que estão muito alinhados com uma demanda de criar respostas à crise climática. Esses projetos chegaram a ser impactados pela questão de corte de recursos?
Jacques Mick – A gente tem um grupo pequeno de pesquisadores que têm redes sólidas de financiamentos de longo prazo, que provêm de três fontes principais: algumas grandes corporações privadas, em um número pequeno; grandes corporações públicas, particularmente a Petrobras, que é nossa grande financiadora de pesquisa – um terço da pesquisa que temos aqui é financiada pela Petrobras; há algumas áreas do nosso trabalho que permanecem tendo financiamento a despeito dessa crise. Então qual é a minha preocupação principal: estou menos de olho nos 15% que têm financiamento e mais de olho nos 85% que não têm financiamento, e dentro desses 85%, na parcela que mais precisa. E como a gente vai atrás desse recurso? Eu vou dar um exemplo: o biotério central tem um projeto de autossuficiência energética com energia solar. Esse projeto é fabuloso porque significa dotar de autossuficiência energética a estrutura que permite o desenvolvimento de produtos para salvar vidas. O projeto é um primor, mas a gente vai levar décadas para implantar sem financiamento, se depender do nosso próprio orçamento. Para isso a gente precisa ir atrás de todo tipo de parceria que puder fazer. Uma coisa que vamos discutir com a comunidade de pesquisadores é como fazer isso, porque até esse momento o papel da universidade era dizer o seguinte: a gente vai limpar o caminho para os pesquisadores fazerem o que querem fazer. A gente acha que isso é pouco. Queremos limpar o caminho e também criar mecanismos para captação de recursos, porque a gente entende que nem todo pesquisador é um captador de recursos. Se a gente quiser acelerar o ritmo, a universidade precisa ter estruturas de captação. Tramita desde 2013 uma proposta de regulamentação da relação entre a UFSC e as fundações. Não é admissível que uma universidade do nosso porte tenha aberto essa discussão há nove anos e não tenha fechado. Nós precisamos ser capazes de dar um desfecho para isso para criar segurança jurídica aos projetos que já existem. Isso significa rever regulamentação e contrato. Pacificado isso, podemos prever uma agenda de cooperação baseada em valores republicanos que nos permita definir uma estratégia de captação de recursos para a universidade, sabendo que uma universidade como a nossa, com o prestígio que tem, tem portas abertas. Um exemplo é a conexão com o ecossistema de inovação. A universidade estará muito próxima.
Apufsc – Em sua primeira entrevista coletiva após a nomeação, o reitor Irineu Manoel de Souza falou das soluções que são pesquisadas dentro da UFSC e podem ser aplicadas e ajudar a gerar economia na universidade, como a energia solar, por exemplo. Isso está no foco da Propesq?
Jacques – Essa é uma linha que a gente quer implementar na Propesq: valorizar a pesquisa que se volta para a universidade, que pode solucionar problemas da universidade. A gente deve fazer, nos próximos meses, um edital da Secretaria de Inovação, que será Superintendência de Inovação, para premiar projetos de inovação de processos da UFSC, em que estudantes, junto com professores, docentes e servidores técnicos, possam desenvolver projetos para melhorar processos da própria universidade. Então será feita uma seleção de projetos e vamos dar bolsas para a implementação. É uma premiação vinculada à implementação de uma ideia. Com isso a gente quer acelerar o processo de aperfeiçoamento institucional a partir do que temos de melhor, que é a inteligência de nossa própria comunidade. Vamos apostar nisso porque entendemos que a pesquisa é uma possibilidade que deve ser estimulada a todo mundo. Queremos que todos que quiserem pesquisar, pesquisem.
Apufsc – Quais outras questões são prioritárias para a Propesq?
Jacques – Tem uma questão muito importante na nossa agenda de campanha que é promover a igualdade na pesquisa. Esse é o tópico central do nosso compromisso de gestão. A marca que temos que construir neste mandato é a de tornar a UFSC referência em relação à igualdade. No que diz respeito à pesquisa, isso envolve eliminar discriminações que dificultam a participação de técnicos, por exemplo. Em segundo lugar, promover medidas que permitam maior igualdade entre os gêneros. Hoje temos indicadores de gênero robustos, mas ainda não temos indicadores de raça no que diz respeito à participação de docentes na pesquisa. Eu falei que só 15% dos nossos projetos são financiados. Dentro daqueles financiados com mais de R$ 1 milhão, só 15% são liderados por mulheres. Nós temos 42% de mulheres pesquisadoras na UFSC. Para chegar mais perto da igualdade de financiamento, temos que mais que dobrar esse número. Esse é o tipo de agenda na qual a gente quer investir. Outro exemplo tem a ver com estimular que nossa estrutura de pesquisa opere como um incentivo à vocação de jovens cientistas, especialmente jovens cientistas mulheres.
Stefani Ceolla
Imprensa Apufsc
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