Por Dilvo Ristoff
Em 1965, Alvin Toffler alertava para algo que ele chamou de choque de futuro, referindo-se ao stress e aos transtornos físicos e psicológicos que mudanças em demasia e rápidas demais causam nos indivíduos. Cinco anos mais tarde, após discutir o assunto com meio mundo – de vencedores do prêmio Nobel a hippies, de filósofos a psiquiatras, de homens de negócios a educadores, de pesquisadores a literatos –, Toffler publicou o seu Choque de Futuro, onde se mostrava perplexo com o pouco conhecimento sobre os meandros e limites da capacidade adaptativa dos indivíduos. Segundo ele, pessoas que deveriam se preocupar com isso – aquelas que poderiam nos preparar para as mudanças – pareciam paralisadas e saber quase nada a respeito. Embora muitos falassem sobre a necessidade de “preparar as pessoas para o futuro”, ninguém parecia saber como organizar esse tipo de preparação. E Toffler concluiu: “Diante da mais rápida mudança a que o ser humano já foi exposto, permanecemos lamentavelmente ignorantes sobre como o animal humano lida com ela.”
Isso há meio século! Isso, quando a internet se chamava de Arpanet! Antes, portanto, do iPad, dos tablets, dos telefones celulares, do Twitter, do Facebook, do Instagram, do Snapchat, do Pinterest, do WhatsApp, do LinkedIn, do Youtube, do streaming, do podcast, do Zoom, do Bing, do Google e do Google Meet, das plataformas digitais, da instantaneidade da comunicabilidade móvel, dos blogs, dos influencers, do Pix, das criptomoedas, dos drones, dos robôs, do TikTok e da parafernália digital à nossa volta. Antes também do home office e da uberização do trabalho. Ah, e bem antes dos emoji e do pau de selfie – esta expressão maior das vaidades de um tempo em que os indivíduos já não conseguem mais só viver; precisam também se ver vivendo.
Se é certo que desde os anos 1970 colocamos um monte a mais de lenha na fogueira das vaidades humanas é certo também que os tempos hoje são outros, os espaços vivenciais, os instrumentos, as técnicas e os métodos operacionais são outros, os propósitos a serem alcançados são outros e, claro, tudo isso faz com que nossos laços e lealdades sejam outros. Nossas raízes identitárias já não são as velhas raízes de antigamente. A bem da verdade, nem mais como metáfora as raízes funcionam muito bem. Hoje, talvez, fios, fibras ópticas, pixels e mensagens criptografadas sejam representações mais apropriadas do que nos aproxima. Diante disso, o presente se distancia dramaticamente do passado recente, dessacralizando as estruturas sociais tradicionais da comunidade, da família, da escola, da nação e da religião. A indicação é clara: o futuro imaginado por Toffler já chegou.
Talvez esteja aí a explicação para a ignorância artificial – esta necessidade fissurada, tão perceptível entre grupos sociais conservadores, de deliberadamente afirmar um passado que não mais existe e de fingir que o presente, por ser fugidio e desestruturador, não merece nossa atenção, porque, se o negligenciarmos, teremos um grande e seguro passado pela frente. Segundo Toffler, a reversão obsessiva ao passado é uma das estratégias para enfrentamento do choque de futuro. Quanto maior a ameaça trazida pelas mudanças, maior é o retorno a um jeito antigo de fazer as coisas, por mais inaproriado e irrelevante que ele possa ser. Advogam, portanto, a “política da nostalgia”, de um tempo em que supostamente tudo e todos andavam nos trilhos: se antes a ordem era mantida pela polícia, contratemos mais policiais para conter a atual desordem; se bater nos filhos resolvia o problema da desobediência, deixemos a cinta à mão para ver se se ajeitam; se os alunos não respeitam os professores, que sejam criadas escolas onde a autoridade possa ser militarizada e afirmada.
Choque de presente
Não é por acaso, portanto, que enxames de pastores voam pelo país buscando ferroar algum descrente, tentando trazê-lo de volta ao reino de um Senhor, onde a Terra é plana, onde o Sol ainda nasce e se põe todos os dias, onde a família é a tradicional, onde a escola só ensina, não educa, onde Deus (o seu, é claro!) está acima de tudo e todos. Buscam compensar o seu desconhecimento, a sua incapacidade, insegurança e instabilidade emocional diante do viscoso e promissor presente, trazendo de volta o passado, venerando o poder autoritário do chefe de sua predileção. Se choque de futuro é o que Toffler identificou nos idos anos de 1960, o que vivemos hoje, em que a transitoriedade e não a fixidez é o novo normal, deveria se chamar choque de presente, pois nos afeta por inteiro aqui e agora e a todos em todo o mundo. Já não é mais só o futuro que nos preocupa, é o futuro que se tornou presente que nos atropela e impacta, física e psicologicamente, levando ao esgarçamento das relações e lealdades tradicionais e a uma drástica mudança nos afazeres diários dos indivíduos e na vida social tal qual a conhecemos.
Ponto de inflexão
Diante disso, surge a pergunta: estarão as universidades preparadas para encarar esses novos tempos, sem que sejam atropeladas pela locomotiva do presente e a pletora de mudanças que carrega? Os desafios hercúleos que se multiplicam aceleradamente diante de nossos olhos deixam a sensação de que tudo o que puder ser feito é hoje pouco, lento demais e, talvez, tardio. A exemplo do relatório recente da Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas sobre a crise climática, chegamos, na esfera educacional, também ao ponto de inflexão, do make it or break it, ou seja, ou agimos para trazer a universidade à nova realidade diante de nós ou a quebramos. Não há mais tempo e espaço para a indiferença, para a omissão, para andarmos com o freio de mão puxado, para adiar ou delegar a outros as decisões que temos que tomar, pois sem ação imediata e sem o nosso comprometimento direto seremos engolidos pelo tsunami de mudanças em curso em todas as esferas da atividade humana.
O alerta parece alarmista, mas não é, se considerarmos, por exemplo, que, segundo o relatório da OCDE de 2019, “14% dos atuais empregos devem desaparecer como resultado da automação nos próximos 15 anos e outros 32% provavelmente serão radicalmente modificados à medida que tarefas individuais são automatizadas”. Ainda segundo a OCDE, é compreensível a preocupação com o impacto dos robôs, da inteligência artificial e da transformação digital sobre o mundo do trabalho e do emprego. Embora o relatório seja relativamente otimista, argumentando que novos empregos estão sendo criados a uma velocidade maior do que os que estão sendo perdidos e que a relação custo-benefício nem sempre justifica a automação, há, segundo o próprio relatório, os que “pintam um quadro bastante sombrio do futuro, argumentando que a automação poderia destruir quase metade dos empregos nas próximas décadas”. Um dos estudos que vão nessa linha mais preocupante é o de Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, da Universidade de Oxford, que analisam o impacto da computadorização sobre 702 ocupações atuais e concluem que nos Estados Unidos cerca da metade (47%) dos empregos atualmente existentes poderão desaparecer nas próximas duas décadas.
Acrescente-se a tudo isso o fato de que as primeiras gerações da era digital estão agora batendo às portas da universidade. O professor Francisco López, consultor da Global University Network for Innovation (GUNI), ao discutir as habilidades e competências de que os universitários necessitarão no século XXI, destaca que:
“Os alunos nascidos no início do século XXI têm novas características: são digitais, atuam nas redes sociais, são globais, aprendem fazendo, trabalham juntos em grupos presenciais e virtuais e em rede. Eles preferem aulas práticas e dinâmicas, não palestras tradicionais. Eles tendem a harmonizar a vocação com a empregabilidade. Eles aspiram ser capacitados para empregos que ainda não existem, receber um ensino inovador para os empreendedores, que os leve a obter resultados rápidos no mercado de trabalho. A primeira geração que cresceu em um ambiente digital agora está entrando nas universidades. A internet transformou radicalmente a educação em apenas 20 anos.”
López argumenta que esse novo perfil do estudante exigirá algumas mudanças significativas na forma de ensinar e aprender, pois não se trata mais de apenas dominar conhecimentos específicos de profissões já existentes e que possivelmente se extinguirão nos próximos anos. Será necessário sobretudo aprender a empreender, projetar, trabalhar em equipe com alunos e professores, conectar-se às redes de pesquisa mundo afora, o que significa ler, escrever e falar em outros idiomas, ter familiaridade com produtos da era digital (big data, blockchain, neuro-robótica, software, cibersegurança, videogames, 3D, realidade virtual), desenvolver também habilidades genéricas, buscar atualização permanente e entender as implicações éticas das tecnologias utilizadas.
O desafio epistemológico
O Relatório GUNI deixa claro que estamos hoje diante de um “desafio epistemológico: transformar as disciplinas em um ecossistema do conhecimento sem que elas percam as especificidades funcionais e de pesquisa”. Por isso mesmo, há que se pensar urgentemente em estratégias para lidar com a obsolescência das profissões e, portanto, em novas modalidades de cursos ou trajetórias acadêmicas – cursos abertos, habilitações múltiplas, capacitação continuada ao longo da vida, profissões híbridas, mais cursos de línguas estrangeiras, desenvolvimento de competências para além das hoje previstas para os cursos de graduação – coisas como liderança, comunicação, linguagens, criatividade, resiliência e, claro, familiaridade com inteligência artificial, automação e robotização, que devem ditar as regras de boa parte do trabalho até aqui realizado por humanos.
Nos anos 1970, Toffler alertava de que uma das expressões do choque de futuro era o que chamou de “especialismo”, a versão acadêmica do que denomino de ignorância artificial, por ser resultado de ação deliberada, derivada da zona de conforto de profissionais de alta qualificação. Segundo Toffler, os adeptos do especialismo são aqueles – cientistas, doutores, professores universitários, pesquisadores – que fazem uso das últimas inovações na sua área de atuação, mas se fecham à inovação sociopolítica, cultural e econômica. Eles têm horror aos protestos, desconhecem o mundo à sua volta, mesmo que ele esteja em chamas, e se ocultam no estreito canto de sua torre de marfim, onde se sentem seguros e tranquilos por saberem quase tudo sobre quase nada. Como negacionistas, trombarão com a mudança ao invés de simplesmente encontrá-la e procurar compreendê-la. E essa colisão, que inevitavelmente ocorrerá, tende a ser psicologicamente avassaladora e catastrófica para a sua vida e sua carreira profissional, e não o que poderia ou deveria ser: um processo estudado de enfrentamento e superação gradual de problemas.
O grande desafio da formação
Apesar do meio século que separa o Choque de Futuro do Relatório GUNI, as constatações não são muito diferentes. Ao concluir que as mudanças radicais nos métodos e meios de produção e distribuição trazidos pela revolução digital e pela robotização da vida humana levarão à obsoletização de grande parte dos atuais empregos e à expulsão de grandes contingentes populacionais do mundo do trabalho, condenando-os a um papel residual, o Relatório GUNI propõe que o grande desafio das universidades no atual cenário é “formar pessoas para profissões que ainda não existem”. E alerta: “Não basta ter um bom treinamento aplicado ou técnico, pois os alunos também devem receber ferramentas para redefinir suas competências e habilidades necessárias ao longo da vida.” Toffler, bem antes de o futuro chegar, alertava para o fato de que as fronteiras do conhecimento especializado estavam em colapso e que os grandes desafios da humanidade só poderiam ser adequadamente enfrentados se conseguíssemos transpor os estreitos limites das disciplinas, das instituições e mesmo das nações. Isso significava repensar não só os currículos, mas também o próprio sentido da formação profissional. “Temos que criar Conselhos do Futuro em cada escola e comunidade”, pregava Toffler. Os currículos do presente, argumentava há meio século, com as suas disciplinas hermeticamente fechadas em si, não tomam por base as necessidades humanas de seu tempo e muito menos as dificuldades que os estudantes terão ao enfrentar o olho do furacão das mudanças que se anunciam e, por isso mesmo, precisam ser repensados a partir de novas bases conceituais.
E alguém, além dos que negam o presente e imaginam o futuro como uma réplica do passado, ainda tem dúvidas de que deve ser assim nos dias de hoje? Penso que não, mas é urgente que a universidade – esta instituição milenar que sempre soube se reinventar e permanecer relevante na produção e disseminação do saber – avance na discussão para que possamos melhor entender não apenas o que precisa ser feito mas também como fazer a contento o que pode e precisa ser feito pelos professores, pesquisadores e estudantes expostos a esse viscoso e escorregadio presente.
Diante da constatação de Gordon E. Moore de que a cada 24 meses a capacidade dos computadores aumenta em 100%, pelo mesmo custo, fica evidente que, para não ser marginalizada pelas Amazons, Googles e Applesda vida, não basta dizer, como faz o Relatório GUNI, que “[a universidade] deve formar profissionais criativos, pensantes, críticos e comprometidos”. Embora essas respostas sejam indicativas de um importante objetivo a ser buscado, elas são genéricas demais para que possam ser efetivamente traduzidas em ação e trazidas ao cotidiano da vida acadêmica. Sem esse passo adiante, será difícil manter a relevância da universidade como espaço privilegiado para o avanço do conhecimento. Se não conseguir trabalhar adequadamente o choque de presente que nos aflige e, especialmente, a ignorância artificial que contamina o campus, a universidade perderá o seu status atual de celeiro natural de talentos e energias criativas da sociedade e não conseguirá ajudá-la a se preparar para o novo futuro.
Professor do Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação | UFSC