Por Remy José Fontana*
No curso da existência vamos encontrando algumas pessoas, cruzando destinos, partilhando projetos, seguindo caminhos, perseguindo utopias. Estes encontros se dão em vários planos, desde os afetivos, passando pelos profissionais, os de militância política, os da luta ideológica, os de afinidades culturais, entre tantas. Constroem-se desta forma identificações, estabelecem-se compromissos, tecem-se laços de solidariedade, projetam-se utopias, tudo o que dá sentido de pertencimento a um grupo, a um agregado social, a uma organização sindical, a um partido político, a uma comunidade de interesses partilhados.
Da filosofia à biologia, da poesia à mecânica quântica, passando pelas religiões, “religare”, consagra-se o entendimento de que não há um único ser – sejam seres humanos, animais, vegetais ou minerais -, que tenham em si mesmos existência própria, integralmente autônoma. Disto resulta que a realidade última e fundamental da existência seja encontrada ou remetida à condição de ser “uma relação”.
Quando falamos de pessoas, mais evidente e incontornável é a compreensão de que só fazemos sentido quando em relação, quando formando um agrupamento, em último caso um povo, uma sociedade, dentro da qual pode existir um indivíduo singular, cuja singularidade, por sua vez, só pode ser afirmada por contraponto de sua inserção no todo.
Esta é uma das razões que explicam a perplexidade, a inconformidade e a tristeza com que recebemos o impacto da perda de alguém pela morte, de alguém cuja existência era um elo relacional de nossa própria.
É este também o sentido verdadeiro da expressão coloquial de que nos tornamos mais pobres quando perdemos um parente, um amigo, um grande artista, um político virtuoso, um cientista, um gênio benfeitor da humanidade.
Por isto o desaparecimento de alguém que fazia parte de nosso “todo”, de nossas relações, como é o caso aqui de Milton Muniz, colega professor, companheiro de lutas sindicais dos professores na APUFSC, defensor da universidade pública, camarada partidário no PCB – Partido Comunista Brasileiro, e amigo fraterno, perdemos algo de nossas referências, de nossa trajetória, de nossa memória coletiva, e em decorrência nos tornamos, em princípio e imediatamente, menores.
Mas, dialeticamente, conforme o método hegeliano-marxista que nos orientava enquanto camaradas de aventuras sociopolíticas, a história dos homens, as contradições sociais, os projetos em disputa, tudo continua a mover-se e nossos mortos, suas lutas, suas memórias os tornam vivos novamente para os que seguem suas pegadas, suas trilhas, seus projetos.
Assim enterramos nossos mortos, para que eles sigam vivos em nós. Seu tempo individual transforma-se em tempo histórico, um elo de continuidade, uma luta permanente.
Seu tempo particular se dissipa, enquanto o tempo histórico se adensa, e nesta densidade Milton e tantos companheiros que já partiram adquirem uma nova vida, a vida dos sonhos que nos confortam, a vida das esperanças que nos animam e das utopias que nos mobilizam.
Milton Divino Muniz, mineiro de Gurinhatã. É fato que o saber sociológico e antropológico há uns 100 anos já desautorizou e desacreditou as explicações com base num determinismo geográfico, para caracterizar povos, qualificá-los, enaltecendo alguns e desmoralizando outros.
Mas, feita esta ressalva, e remetendo-me à experiência pessoal, as duas dezenas de mineiros que conheci, aqui incluindo-se com destaque o Milton, foram pessoas de extrema afabilidade, de personalidade amena, responsáveis, competentes, inteligentes, sagazes. Sim, sei que há grossas exceções, taí um tal de Aécio, a infirmar minhas percepções. Mas fiquemos com exemplos dos bons mineiros, do Milton Muniz, ao Milton Nascimento, de Guimarães Rosa à Carlos Drummond de Andrade, de Fernando Sabino à Darcy Ribeiro, de Sábato Magaldi à Pedro Nava.
Esta mineirice entranhada do Milton não o fez menos ilhéu, pois fazia questão de declarar seu amor a esta terra que o acolheu, onde realizou-se profissionalmente, onde formou sua família fez amigos, companheiros e camaradas e que, ultimamente, no exercício da arte fotográfica, registrou com fina sensibilidade.
O Milton era a ponderação, mas não a contemporização; o cavalheiro, mas não menos aguerrido; a simplicidade aliada a lucidez. Tinha um senso de humor refinado que combinava uma certa ironia, no sentido de instigar uma interlocução, um certo ceticismo diante de posições enrijecidas, como corolário de uma atitude científica da dúvida, da inquirição, da pesquisa visando o esclarecimento, a compreensão. Mas eram atitudes que vinham antecedidas por um sorriso de boas-vindas, uma disposição amistosa para uma conversa, para um encontro, seja de trabalho, seja para as lutas políticas.
A torrente de homenagens que lhe prestam seus amigos, camaradas, alunos e outros tantos que o conheceram é um atestado eloquente de quanto o apreciavam, de quanto o admiravam e o tinham como uma dessas pessoas que terão inscritos seus nomes nos anais daqueles que merecem ser lembrados pelo que foram e pelo que fizeram.
*Professor aposentado no Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC