Para Priscila Cruz, gestão ‘sem foco’ tem prejudicado as políticas públicas para educação infantil e alfabetização
A um mês do final do ano, os diagnósticos sobre a gestão do Ministério da Educação (MEC) durante o governo de Jair Bolsonaro não são animadores. Na semana passada, relatório da Comissão Externa de Acompanhamento do MEC, conduzida pela Câmara, chamou a atenção da imprensa para a paralisia da pasta e sua gestão “insuficiente”.
Em entrevista ao GLOBO, a análise da presidente-executiva do Todos Pela Educação, Priscila Cruz, é semelhante. Para Cruz, Abraham Weintraub usa o MEC para motivações políticas pessoais e sua passagem pela pasta já é considerada pior que a de seu antecessor, Ricardo Vélez Rodríguez, que ficou no cargo de janeiro a abril. Confira:
Qual é a sua opinião sobre o comando do MEC até aqui?
É uma falta de definição, uma gestão muito sem foco, ideologizada. A educação (na gestão Bolsonaro) vem num zigue-zague de tentar trazer uma racionalidade maior, mas quem tem triunfado tem sido a área mais ideológica. Abraham Weintraub está sob essa égide. Na visão dele, o problema da educação é o aparelhamento de esquerda nas escolas e universidades, e a falta de disciplina militar para fazer com que os alunos aprendam mais. Verificamos uma série de crenças e hipóteses que não têm nenhuma base na realidade. Qualquer pessoa que circula pelas escolas brasileiras entende que a visão do ministro é ideológica e não está ancorada em evidências. Essa gestão tem perdido muito tempo, recurso financeiro e energia política de articulação, que são componentes essenciais para uma boa gestão educacional.
O ministro sempre bateu na tecla de que ia melhorar a gestão do MEC. Isso está acontecendo?
Há uma dissonância entre o discurso e a atuação. A nossa preocupação é essa falta de pragmatismo. Não importa se na sua crença pessoal a educação militar é o melhor caminho, ou que o problema da educação brasileira são os professores que têm uma matriz de pensamento de esquerda. A pergunta que o ministro deveria se fazer todos os dias ao acordar é “o que eu preciso fazer para ser a melhor alavanca possível para melhorar a aprendizagem dos alunos brasileiros?”. O MEC é alavanca, não é executor na ponta.
Ele está desempenhando o papel que se espera de um ministro de Estado?
O ministro é o principal articulador de políticas nacionais, e as pessoas precisam enxergá-lo como uma liderança com competência técnica, política e gerencial. Esse ministro não tem nenhuma dessas características, então a função dele como articulador fica muito prejudicada. As tarefas que esperamos de um ministro não conseguem ser colocadas em prática, como ele não é técnico para formular (políticas) e tem o discurso que prejudica muito a capacidade de articulação para melhorar a aprendizagem, os problemas menores são colocados em outra orbe hierárquica. Temos um MEC escondido atrás da cortina da ideologia. Os problemas vendidos para o público como principais questões da educação são o professor doutrinador, a falta de disciplina, a falta de articulação do ensino superior com a educação básica. Eles têm invertido a hierarquia de importância das missões da educação.
É possível estabelecer uma comparação entre as gestões de Weintraub e de Rodríguez?
É uma comparação entre duas pessoas completamente diferentes, o que têm em comum é uma gestão voltada para ideologia e não para resultados. O Vélez ficou pouquíssimo tempo, ele não tem a mesma verve, agressividade. Vélez não teve tanta projeção nacional, algo que Weintraub entendeu muito rapidamente: utilizar o MEC como megafone para um projeto político pessoal, para se tornar figura pública nacional. Podemos criticar, achar que isso é agressivo, e as pessoas preocupadas com resultados educacionais são contra essa postura, mas ele ganhou muito nesse processo. Talvez Weintraub seja a única pessoa que ganhou com tudo isso. Todo o resto perdeu, porque a má qualidade da educação não afeta só os alunos que estão na escola pública hoje, mas todos nós. Pioramos do Vélez para o Weintraub. Seria ótimo poder sonhar com um ministro com competência técnica, gerencial, política e que seja referência para garantir a articulação para melhorar os resultados educacionais no país inteiro.
Alguma área foi mais prejudicada neste ano?
Várias áreas ainda estão descobertas. É com educação infantil de qualidade que começamos a construir uma sociedade com pontos de partida mais igualitários. É um campo em que temos ausência de avaliação, de parâmetro de qualidade, de um programa nacional obcecado por garantir o desenvolvimento cognitivo, emocional, físico e social das crianças. Temos que trabalhar para que as crianças, sobretudo as mais pobres, tenham acesso à educação infantil. Além disso, temos uma situação muito crítica na alfabetização. Uma forma fácil de ver o futuro do Brasil é olhar para os resultados da alfabetização, temos 55% das crianças ainda não alfabetizadas. Essas crianças vão ter seu direito de aprender muito prejudicado. Tivemos um decreto vago instituindo a Política Nacional de Alfabetização. Não existe uma política, são várias premissas, mas nenhum direcionamento de política pública bem desenhado. A terceira ausência completa do MEC é nas discussões relativas ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica). É a matéria legislativa mais importante em tramitação e ainda não tivemos por parte do MEC nenhuma projeção feita, nenhum cálculo apresentado. O que temos são posicionamentos que mudam muito. Quem tem comandado a discussão é o Ministério da Economia, e o MEC está como coadjuvante, o que é um absurdo.
A senhora já disse que gostaria de elogiar todos os dias. Há algo para elogiar nesta gestão?
A Secretaria de Educação Básica (com Janio Macedo) tem tentado acertar, e o principal acerto foi a continuidade dos programas mais importantes vindos de gestões anteriores, como o apoio aos estados para expansão do ensino médio em tempo integral e o apoio a estados e municípios para implementação da Base Nacional Comum Curricular. São duas políticas de continuidade muito importantes e com as quais o atual secretário tem assumido compromisso.