Carta aberta publicada pelo CRP/RJ discute a situação de alunos e professores durante a pandemia
O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP/RJ) publicou uma carta aberta intitulada “Saúde mental, comunidades escolares e pandemia no Brasil”. Os profissionais apresentam considerações sobre os impactos da pandemia da Covid-19 e o isolamento social na saúde física e mental da população.
No caso das comunidades escolares, em especial, a carta aponta que, para reestabelecer a saúde mental de estudantes, entre outras ações, é preciso que os profissionais da educação estejam saudáveis. “Quem cuida de quem cuida? É urgente falar da saúde mental dxs profissionais de educação, das mulheres e mães sobrecarregadas, dos idosos, dos sofrimentos dos trabalhadores que, com medo de perder o emprego voltam às atividades imersos em fragilidades físicas e emocionais.”
Confira a carta na íntegra:
Saúde mental, comunidades escolares e pandemia no Brasil
“É preciso uma aldeia inteira para educar nossas crianças” (provérbio africano)
A partir da escuta clínica e do trabalho na interface entre a psicologia e a educação, nós, psicólogos atuantes no Rio de Janeiro, compartilhamos essa carta aberta apresentando nossas considerações sobre os impactos da pandemia de Covid-19 à saúde mental das comunidades escolares. As proposições aqui elencadas são também recursos que apontam para a composição de forças intersetoriais e comunitárias ampliando as perspectivas de cuidado com a infância e a adolescência.A situação que atingimos no Brasil é grave diante de tantas mortes e da reiterada insuficiência das políticas públicas federais, estaduais e municipais no combate à pandemia desde o início de sua disseminação e ao longo de todo o ano de 2020. A precoce flexibilização do distanciamento social colocou a população sob situação amplamente vulnerável. Uma parte vive um confinamento sem fim e incomparável aos outros países. Outra parcela, não pode ficar distanciada porque necessita trabalhar e mesmo sem recursos ou apoio, se expõe ao contágio. Há ainda aqueles que negam e/ou minimizam a possibilidade de contaminação. A marca indelével de décadas de descaso e desmonte das políticas de saúde e educação no nosso país foi exposta e intensificada por uma gestão federal que nega a ciência, a educação e os direitos básicos de cidadania. A ausência de uma política coletiva articulada entre as diferentes instâncias governamentais e a política negacionista genocida do governo federal nos levou a uma situação limite. Nela as decisões acerca dos riscos passaram a ser gestadas individualmente, intensificando a decadência da vida coletiva e a sensação de descontrole sem fim.
Somos seres sociais e por isso nossa saúde mental depende de uma vida coletiva. A pandemia recrudesceu os processos neoliberais individualizantes, colocando milhares de pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade. Inventamos recursos ao longo do período de distanciamento social para assegurar algum modo de contato mesmo que mediado pelas telas. Contudo, os processos de subjetivação neoliberais são causas de adoecimento à saúde mental por acentuação dramática às diferenças e desigualdade de acesso às redes de cuidado. Tais desigualdades, cronificadas no contemporâneo, têm feito inúmeras crianças, adolescentes e adultos entrarem em sofrimento apresentando sensações de angústia, ansiedade e medo.
A pandemia está deixando suas marcas. É impossível estar confinado tanto tempo sem consequências, isso não seria humano. O impacto vivido a partir desse cenário descrito gera riscos para a saúde física e mental da população. O nível de componentes estressores envolvidos, as sequelas relatadas por quem já foi acometido pelo vírus e/ou perdeu suas referências familiares e sociais são elementos fundamentais a considerar. Como profissionais de saúde mental e da educação precisamos re-conhecer essas marcas em todos nós, bem como os contextos territoriais onde são geradas para poder acolher, cuidar e trabalhar.
A saúde mental infanto-juvenil se dá num âmbito de discussão multidisciplinar e político que inclui a instituição escolar, mas não a constrange sob um status salvacionista. Portanto, questionamos argumentos segundo os quais a retomada de atividades, inclusive as escolares, o deslocamento de onde se pensa estar confinado, seja por si só a estratégia para preservação da saúde mental. Ainda estamos vivendo em meio a uma pandemia e os cenários de infecção e avaliação dos efeitos na população são flutuantes.
O que promove saúde mental é uma política coletiva respeitosa de acolhimento, cuidado e contorno. O investimento é urgente e deve ser nisso! Defendemos a saúde das relações, a construção do cuidado coletivo capaz de levar em conta os corpos marcados pela pandemia, pelos efeitos psíquicos gerados pelo uso de máscaras e pelo distanciamento em nós. As emoções oscilantes e afloradas desse momento não são positivas ou negativas em si, são todas funcionais e buscam preservar nossa integridade. Para tal é necessário reconhecê-las, pois passam pelos nossos corpos gerando expressões de mobilidade e interação social. Sem o medo, a raiva, a sexualidade, tristeza, vergonha, o nojo – entre outras – não teríamos movimentos. Elas são potências que, quando exacerbadas, cumprem função e podem ser vistas como grau de marcação, inscrição da vida em sua singularidade e pluralidade. São os recursos psíquicos que, acionados, nos protegem, deixando-nos atentos. Quando suprimimos as emoções obstruímos sua circulação impedindo o sentido da construção de bem-estar e bem-comum.Restabelecer a saúde mental de estudantes requer, entre outras ações, adultos e cuidadores bem cuidados. Quem cuida de quem cuida? É urgente falar da saúde mental dxs profissionais de educação, das mulheres e mães sobrecarregadas, dos idosos, dos sofrimentos dos trabalhadores que, com medo de perder o emprego voltam às atividades imersos em fragilidades físicas e emocionais. As práticas diárias de dominação, vergonhosa remuneração, falas autoritárias de quem não conhece a dinâmica escolar devem ser analisadas como fatores que impactam a construção/produção de saúde mental nas escolas. Fortalecer trabalhadores da educação é ouvir o que dizem, dar centralidade para o papel deles e pressionar gestores públicos e privados para a garantia de direitos. Os professores são constantemente invisibilizados nessa cena, ainda assim gritam, fazem greve e insistem em seu ofício, apesar de toda tentativa de usurpar a educação a favor da conformação às necessidades econômicas do século XXI.
A produção e fortalecimento de saúde mental não depende apenas da volta à escola ou de passeios ocasionais fora do confinamento, próximo ao controle da pandemia ou mesmo quando ela for debelada. Agravos à saúde mental são produzidos também no espaço escolar. Tal como a conhecemos antes da pandemia, a escola é um espaço que precisa ser reivindicado como lugar de cuidado coletivo, acolhimento, e por isso, promotor de aprendizagem. As escolas não são um ambiente de total controle como muitos creem – e historicamente tentam. O retorno às aulas presenciais da educação infantil ao ensino superior, por si não garante a preservação da saúde mental. As escolas que (re)encontraremos serão outras e com as marcas que a pandemia imprime nas vidas que nelas transitam. É preciso ter em conta a produção de sofrimento e adoecimento que o retorno pode produzir se não for garantida a segurança dos trabalhadores da educação, crianças, adolescentes e seus familiares. Precisamos considerar a submissão dos trabalhadores e estudantes ao contágio, como produtores de efeitos para a saúde mental, assim como as rígidas regras dos protocolos de segurança que impedem o abraço, o beijo, o colo e o compartilhamento de objetos entre crianças pequenas. Como serão organizadas as atividades para estudantes que precisam tocar nos objetos para ler e sentir, para serem cuidados, ler lábios para entender? Lábios vedados pelas máscaras. Muitas e muitas máscaras.
A possibilidade de agravamento da pandemia e a sombra de uma nova interrupção das aulas também se constituem em potenciais prejuízos emocionais. Considerando a diversidade das redes de educação pública e privada, em boa parte delas as condições de trabalho são precárias. Os riscos que decorrem da exposição de estudantes e profissionais são maiores e mais prejudiciais do que qualquer outro benefício que porventura possam vir a ter, afinal, o ano letivo se recupera, vidas não! Há argumentos acerca de “perdas cognitivas” decorrentes dos meses sem educação escolar presencial. Tenhamos em conta que boa parte dos estudantes não tenha sido atendidos nem com ensino remoto. É preocupante quando tais discursos se valem de teorias sobre desenvolvimento humano para que caibam em seus argumentos, gerando mais insegurança e culpabilização nas famílias e educadores com relação às suas responsabilidades. Sabemos que o desenvolvimento humano é multideterminado e estimulado pelos diversos ambientes de interação estabelecidos com as crianças.
Qual seria o protocolo emocional capaz de lidar com tantos afetos e instabilidades desse momento? Construirmos/consolidarmos uma lógica de cuidado coletivo que considere a diversidade das escolas brasileiras implica em não estabelecer uma estratégia única a seguir. Quanto maior o repertório de possibilidades de cuidado melhor. Toda generalização que enquadre as escolas em um receituário único na lida com as questões que se agigantam a partir da pandemia atrapalharão a escuta. Precisamos estar atentos a todos os recursos possíveis em jogo. Lembremos que na política da (con)formação a que estamos submetidos busca-se desconectar o humano de sua potência crítico-inventiva.
Além dos protocolos sanitários para minimização de riscos é preciso incluir a reflexão coletiva como prática de cuidado permanente nas comunidades escolares. A minimização dos riscos não pode equivaler à diminuição do outro, da vida e de saídas coletivas possíveis. Quais políticas, estéticas e éticas do encontro podem ser produzidas e desejadas em cada espaço escolar de modo seguro? Como podemos aproveitar esse momento para não ter tanto medo de fazer diferente do que conhecemos? Como produzir nas nossas escolas, e no seu entorno, comunidades de cuidado, afeto e aprendizagem?Mobilizemos diálogos francos e amplos capazes de acionar intersetorialidades que se ocupam da infância, da adolescência, da saúde dos trabalhadores envolvendo serviço social, psicologia, educação, saúde pública entre outros recursos. Defendemos o fortalecimento das redes comunitárias como um modo de vida social capaz de disseminar lógicas de amparo, produzindo ações coletivas inventivas e pressionando as autoridades governamentais. Ações de cuidado e solidariedade proporcionam suporte. A escola não é o único espaço comunitário de cuidado e de socialização a que temos direito. É preciso incorporar como intersetorialidades o contato com os diversos equipamentos culturais da cidade e espaços de convivência. A construção de vínculo comunitário produz saúde mental.
Imprensa Apufsc