Pesquisadoras de gênero comentam caso, que levanta debates sobre a formação de advogados e magistrados
Uma nova onda de protestos sobre o desfecho do julgamento do empresário André Camargo Aranha, acusado de estuprar a influencer catarinense Mariana Ferrer, invadiu as redes sociais de todo o país nesta semana e levantou o debate sobre a postura ética no Direito.
Após reportagem do jornal Intercept, que divulga imagens da audiência, o assunto pautou discussões tanto pela alegação, por parte da defesa, de que não havia a intenção de estuprar, como também pela conduta dos advogados e magistrados. Para professoras e pesquisadoras de gênero da UFSC, os episódios relacionados ao processo evidenciam machismo, misoginia e desqualificação da conduta da mulher manifestados no sistema de Justiça.
A professora de Direito da UFSC, Grazielly Alessandra Baggenstoss, destaca os marcadores sociais dos envolvidos, sendo o réu um homem branco, de uma determinada condição econômica, e a vítima, uma mulher. “São questões que vão fazer a diferença no tratamento recebido pelos envolvidos e é preciso ter esse pensamento jurídico crítico”, afirma. Para ela, o advogado de defesa buscou a lógica da discriminação, sugerindo que a vítima estaria pedindo por uma atitude violenta, como se a violência fosse justificável. “É importante destacar que houve uma linha argumentativa muito sórdida de colocar a mulher em um parâmetro moralista discriminatório. É resgatada uma ideia dos séculos passados, da mulher honesta, que deve ter determinada conduta moral, o que tira o olhar de responsabilização do homem e a atenção do ato que foi praticado”.
A professora comenta ainda a postura dos demais profissionais na ocasião. “As imagens da audiência mostram de forma muito grave e violenta o tratamento à vítima, não só pela ação do advogado, mas também pela omissão do promotor de justiça, fortalecendo a tortura psicológica, em um desrespeito e humilhação inaceitáveis no sistema de Justiça”.
Para a professora Joana Pedro, uma das coordenadoras do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC, o caso mostra como as mulheres que denunciam violências estão sendo desqualificadas, humilhadas, intimidadas amplificando ainda mais os efeitos psicológicos que essas ações terão sobre elas. Para ela, o caso faz parte de um contexto mais amplo, que reflete a sociedade muito masculina e que está reagindo aos poucos ganhos que as mulheres tiveram. “Neste momento de crise econômica, saíram do armário todos aqueles machistas, misóginos. O que está em disputa é quem vai ficar com os poucos bons empregos, quem vai se submeter para sobreviver”.
De acordo com a pesquisadora, é preciso investir em formação para evitar os retrocessos. “Nós precisamos de um corpo de advogadas e advogados que instruam melhor, que ajudem, que não deixem uma mulher ser humilhada. Precisamos de mais amparo, de melhor instrução para que não percam o medo de denunciar. Elas precisam ter coragem”, ressalta Joana Pedro.
Grazielly reitera a importância das transformações no sistema judiciário. “Conhecendo a estrutura linguística do Direito, percebemos que a igualdade não é aplicável para todos, e os movimentos sociais estão denunciando isso, as diversas violências que ocorrem e a necessidade de mudança. A área apresenta uma carência no que se refere ao letramento de gênero, de questões sociais, sobre a localização geopolítica dos envolvidos”.
A necessidade de uma postura crítica
Para a professora Grazielly, é preciso ir além da formação pautada no modelo tradicional do Direito, que olha as pessoas como se fossem objetos. “A complexidade da vida é trazida pelos pensamentos críticos, raciais, feministas que vão trazer concepções de fatores sociais, de como a sociedade está organizada”, reforça.
A aluna de Direito da UFSC Marcela Matheus também defende uma formação que alerte para os problemas do sistema e os discuta em profundidade. A estudante da 7ª fase aponta que os debates em sala de aula e os grupos de pesquisa e extensão podem ser grandes aliados nesse sentido. “Também temos muitos professores comprometidos em trazer discussões relevantes, assim como há uma preocupação geral da UFSC em trazer uma base de disciplinas que incentive os estudantes a refletirem sobre o que é e qual o papel do Direito, o que muitas vezes não é uma realidade em outras universidades. No entanto, acredito que há sempre espaço para ajustes e melhorias e que isso deve ser objeto de discussão quando da nova elaboração curricular, por exemplo”, pontua.
Como complementa ainda a pesquisadora Grazielly, admitir uma postura crítica é o que vai evitar que outros casos similares, que vêm sendo tão noticiados, se repitam. “É uma perspectiva urgente. A finalidade do Direito não é ele em si mesmo, é a própria vida, olhar para ela de forma madura e responsável, entendendo sua complexidade. É preciso assumir essa postura ética”.
GT Diversidades
A diretoria da Apufsc vai propor ao Conselho de Representantes do Sindicato a criação do GT sobre diversidades, que deverá considerar a complexidade da identidade docente e as variadas políticas de tratamento e condições de trabalho que resultam dela. A equipe terá como objetivo debater o tema junto à comunidade universitária, colaborando com outros grupos da UFSC que já trabalham nesse sentido.
Imprensa Apufsc