Todos os programas deverão reservar 28% de suas vagas para as cotas
A Câmara de Pós-Graduação da UFSC aprovou na última quinta-feira, 1º de outubro, a Resolução Normativa que regulamenta a Política de Ações Afirmativas para negros, indígenas, pessoas com deficiência e outras categorias de vulnerabilidade social nos cursos de pós-graduação lato sensu (especialização) e stricto sensu (mestrado e doutorado) da UFSC. Após a publicação da Resolução no Boletim Oficial da UFSC, todos os programas deverão reservar 28% de suas vagas para as cotas. A aprovação ocorreu por maioria absoluta, houve apenas um voto contrário.
Os programas de pós-graduação da UFSC deverão destinar, anualmente, 20% das vagas para candidatos pretos, pardos e indígenas, sendo válida a autodeclaração com validação posterior por meio de uma banca a ser constituída pela Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (Saad), e 8% para pessoas com deficiência, e outras categorias de vulnerabilidade social nos cursos de pós-graduação, a serem identificadas pelos cursos, que poderão incluir, por exemplo: estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, quilombolas, estrangeiros e refugiados humanitários, professores da rede pública, travestis, transexuais e transgêneros, estudantes beneficiários do Programa Universidade para Todos (Prouni), entre outros. No caso em que os percentuais das vagas definidas resultarem em um número fracionado, o arredondamento será feito para cima.
“É uma grande conquista”, ressalta a pró-reitora de Pós-Graduação, Cristiane Derani. “Atualmente muitas instituições internacionais de renome, nos Estados Unidos, Europa, Canadá, oferecem cotas raciais, econômicas, de gênero, entre outras. No Brasil também já temos universidades que aplicam de maneira normativa. É uma mudança necessária, defendida mundo afora onde se observa que a diversidade traz qualidade. Assim podemos ampliar o nosso sucesso e abrir portas para que mais pessoas possam compartilhar este espaço de excelência na UFSC”.
A secretária de Ações Afirmativas e Diversidades, Francis Solange Vieira Tourinho, aponta que a aprovação da Resolução é “um marco histórico na luta pelo direito a uma educação plural, democrática e inclusiva. Esperamos que a UFSC, enquanto instituição pública de ensino superior, com esta ação, tenha cada vez mais uma maior inclusão étnico-racial, de gênero, de pessoas com deficiência e outros grupos sociais vulnerabilizados. Espero que tenhamos cada vez mais pessoas engajadas e dispostas ao diálogo, uma postura mais aberta e receptiva da comunidade que contribua com a sensibilização institucional necessária para a consolidação da política desconstruindo a imagem de espaço reservado para a meritocracia, e abrindo as janelas do ensinar e aprender para um horizonte que construa novas realidades para as populações marginalizadas no Brasil, transformando a educação em contextos que minimizem as iniquidades e vulnerabilidades”, ressaltou.
A UFSC possui diversos programas de pós-graduação lato sensu e stricto sensu que apresentam vagas destinadas para ações afirmativas em seus editais de seleção: Antropologia Social, Direito, Ecologia, Educação, Educação Científica e Tecnológica (mestrado e doutorado); Enfermagem (mestrado e doutorado profissional); Engenharia de Sistemas Eletrônicos, Estudos da Tradução, Filosofia, Interdisciplinar de Ciências Humanas, Saúde Pública, Serviço Social, Oceanografia (mestrado). Até junho de 2020, em notícia apurada pela Agecom, cinco programas de mestrado e doutorado acadêmico estão em fase de estudo acerca do oferecimento dessas cotas: Enfermagem, Inglês, Nutrição, Psicologia e Biologia de Fungos, Algas e Plantas.
Mesmo assim, dados de cor/raça dos estudantes matriculados em 2020 nos programas de pós-graduação da UFSC demonstram que 73,8% deles se declaram brancos, 10,94% pardos, 4,09 pretos, 0,95% amarelos, 0,25% indígenas e 10,6% não declaram cor/raça. Segundo o Censo do IBGE, a distribuição da população do Estado de Santa Catarina por cor ou raça é 79,9% brancos, 16,5% pardos, 3% pretos, 0,5% amarelos ou indígenas.
A doutoranda Kamylla Santos da Cunha, do Programa de Pós-graduação em Enfermagem, aplaudiu a decisão. Estudante da UFSC desde a graduação, ela sente racismo e discriminação nos ambientes acadêmicos e profissionais. “Durante a minha graduação, fui única nos espaços. Hoje, no hospital, sou uma das únicas negras em posição de gestão. Enquanto enfermeira do Pronto Atendimento, sou eu e mais duas, num quantitativo de quase 20. No Programa de pós, as pesquisas não têm transversalidade que discutam questões de diversidade. Na Enfermagem, entre graduação e pós-graduação, é um aproximado de 60 professores, sendo que desses, duas são pretas, porém de pele clara,” ressalta. “Isso em um curso de saúde, é bem preocupante. Fazemos atendimento às pessoas, atendemos o SUS, que tem em um dos seus princípios a equidade… equidade e acesso que muitos dos próprios profissionais não conseguem entender. Na pós-graduação, como cientistas, se não temos acesso, interesse em discutir e mudar esse projeto, as pesquisas vão continuar sendo restritas, não conseguindo atender as necessidades de todos”.
Kamylla atualmente trabalha em um hospital particular e na Prefeitura de Biguaçu. Sua tese aborda a gestão dos programas de pós-graduação em enfermagem stricto sensu no contexto das políticas públicas, analisando instituições do sul do Brasil. “Nossas referências na pós-graduação são brancas. Consumimos tudo o que é da branquitude. A referência que temos na Enfermagem é Florence Nightingale, porém diversas mulheres negras no âmbito nacional e internacional que contribuíram para a profissão são silenciadas, como a Ivone Lara, que é conhecida como sambista, mas era enfermeira, e teve importante papel na luta pela saúde mental, antimanicomial. Ingressos e egressos de enfermagem não têm contato com essas histórias”, reforça Kamylla.
Uma das alunas que se destacou no Prêmio Capes de Tese 2020, Anahí Guedes de Mello, defendeu a tese Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. A antropóloga e pesquisadora é surda desde a infância e identifica-se como ativista, feminista, lésbica. É referência nos Estudos Críticos da Deficiência na América Latina, e seus principais aportes apontam à necessidade de reconhecer o capacitismo como categoria interseccional que frequentemente gera violências dirigidas às pessoas com deficiência. Em uma entrevista publicada em agosto, Anahí aponta que “uma possível explicação para as disparidades educacionais encontradas na população com deficiência deve-se à precariedade do atendimento a essas pessoas desde as primeiras fases da educação, além da falta de informação e capacitação dos diretores, professores e demais funcionários das escolas, o que reflete, por conseguinte, no fato de que as políticas públicas de inclusão nas escolas costumam atacar as consequências e não as causas”.
“A acessibilidade do espaço físico e às comunicações, bem como as condições didático-pedagógico-tecnológicas oferecidas pela escola, igualmente podem influenciar decisivamente no desempenho escolar dos alunos com deficiência”, explica. Na pós-graduação não é diferente. “Em todos os níveis de ensino deve ser garantido o acesso. O meu programa, PPGAS, já chegou a ter uma comissão interna de acessibilidade quando eu estava no mestrado, quando as ofertas da CAE [Coordenadoria de Acessibilidade Educacional] não eram suficientes no meu caso. Diria que não exatamente dificultavam meus estudos porque eu conseguia contornar por esforço próprio, mas com certeza facilita muito mais se tiver à disposição serviços de acessibilidade”, pontua Anahí.
Leia na íntegra: Agecom UFSC